sábado, 30 de julho de 2011

As linhas nem tão tortas

Vendo algumas cenas de trânsito nas maiores cidades brasileiras, podemos ter noção do nível de estresse a que estamos submetidos. Se fossemos aqueles observadores da prefeitura, monitorando as telas de nossa cidade, ao acionar o zoom mais aproximado teríamos uma história a cada esquina, a cada minuto. Pelas tortuosas artérias do nosso caminho, passa boi, passa boiada, tocada pelos guardas de farda cáqui. Em suas armaduras de tamanhos e modelos diferentes, eles se enfrentam numa guerra sui generis, na qual não há vencedores e todos são vítimas.
Os motoristas mutantes transformam seu tamanho e sua coragem dependendo do veiculo conduzido. Um cidadão franzino encarapitado na boleia de seu caminhão, ônibus ou caminhonete assume proporções tão gigantescas quanto os seus problemas e descarrega nos veículos menores a ira acumulada. Os gladiadores do asfalto se enfrentam com fúria e destemor, encarando cada ultrapassagem, cada fila furada, cada cruzamento obstruído como a disputa final de suas vidas.
As buzinas constituem um capítulo à parte. Urram por trás dos elmos de quatro rodas com a força dos pulmões cheios, numa vociferação proibida a menores. Seu destempero explode segundos após a luz verde acender, mal humoradas por natureza e atrasadas para o confronto da próxima rua. Esganiçam suas gargantas roucas pela repetição doentia, incomodam doentes e idosos, sorriem do caos instalado. Sua missão é ganhar no grito.
A velocidade tem seu valor nas lutas veiculares. Além de representarem superioridade sobre os antagonistas, conseguem atalhos pelos acostamentos e passagens proibidas. O simples ronco do motor, som gutural e ameaçador, transmite um código de combate, um ranger de dentes de animal selvagem. O que significado do aviso é a iminência de um ataque incisivo, com risco de morte. Portanto, se faz necessária maior atenção.
Evidentemente, não se encontra a menor educação nos embates. A lei é a do mais forte, do mais esperto, do mais valente. Placas e sinais luminosos não têm o menor valor, pois se inferiorizam ante a volúpia avassaladora de quem busca descarregar suas mazelas protegido pela couraça movida a combustível. Os envolvidos nessa contenda se mostram dispostos a matar e morrer, talvez porque imaginem não ter mais nada a perder. A luta não pode parar.
Enquanto isso contabilizamos mortos e feridos, sejam agressores, agredidos ou meros acompanhantes, às vezes apenas espectadores que caminham nas calçadas ou atravessam as vias públicas. As estatísticas apresentam índices alarmantes, mesmo diminuídos pela redução do consumo de bebidas antes do enfrentamento, segundo as novas regras da disputa. O quadro é dantesco.
Costuma se atribuir ao divino a escolha das palavras que contam a nossa história. Quando o relato não nos atende, preferimos considerar que foi escrito certo por linhas tortas. Tentamos encontrar em metáforas as explicações para os equívocos da humanidade. No caso do trânsito, tortos são os corredores sombrios que percorremos na mente.

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