terça-feira, 27 de novembro de 2012

Trinta dias





Tempo, indefinido, dizem até não existir.
Arrastado, perdido, sempre a nos confundir.
Artifício impreciso das luas e gestantes,
abstrato, indeciso nos últimos instantes.
Voa, escapa, esvai, urge, corre, trai.
Ceifa o inocente, frutifica o maduro.
Revela o presente, espreita o futuro.
Relega o passado, memórias, razões.
Desfaz o sonhado, alegrias, emoções.
Muitos trinta dias vivi ano a ano,
frações arredias de tempo insano.
Os findos agora doeram demais,
tortura por hora, minutos iguais.
Tempo voraz no chorar e sofrer,
por isso incapaz de alguém esquecer.
Sem você nesse tempo fui menos eu mesmo.
Momento a momento, lembranças a esmo.
E não houve sequer um raro segundo
aplacando a falta que você faz no mundo.  


sábado, 24 de novembro de 2012

Carta aberta





Em 1976 participei de um festival de música religiosa, convencido pelo Marcos Borges, meu dileto amigo de infância e parceiro de incursões musicais. Ele integrava um grupo jovem que tocava nas missas de uma paróquia perto de casa. A princípio argumentei não ser capaz de escrever a letra, por não ter a mesma habitualidade dele na frequência à igreja. Ele acabou me convencendo e compusemos “Carta aberta”, que venceu o festival diante de um auditório lotado no Colégio Coração de Maria. Na plateia, ao meu lado, estava a minha namorada Márcia, com quem dois anos mais tarde eu me casaria. Por coincidência, ela fizera o primário naquele colégio e estava especialmente feliz. No início dessa semana, minha mãe lembrou-se dessa música e sugeriu que eu tentasse incluí-la no acompanhamento da missa de trigésimo dia de falecimento de minha mulher. Entrei em contato com a Flora, responsável pelo grupo musical que acompanha as missas da igreja de Nossa Senhora do Loreto, e consegui sensibilizá-la. Meu parceiro tocou a música ontem à noite, durante o ensaio do grupo, e eles aprovaram a ideia. Hoje às 18:30, durante a missa no Loretão, caso o celebrante julgue adequado, a belíssima voz do meu parceiro Marcos fará ecoar meus versos. Minhas palavras, acompanhadas de uma linda melodia, serão incorporadas à celebração cristã. Servirão também de subliminar e singela homenagem à minha namorada de tantos anos. Elas retratam minha inspiração há mais de três décadas, mas estão mais do que presentes no momento que vivo agora. Por essa razão, não importa o credo, as compartilho com vocês:

Quando eu me sinto sozinho
e sem forças pra lutar com a dor,
procuro lembrar do Amor
que um dia Alguém aqui pregou.
Pois não desespera quem ora e tem fé,
rico ou pobre, homem ou mulher,
no rebanho não há distinção,
eu sou seu irmão,
estou pronto a lhe ajudar,
quando plantar, quando colher,
quando sonhar, quando sofrer,
quando ganhar, quando perder.
Pode acreditar.

Quando eu cruzar seu caminho,
repare para onde eu vou.
Meu guia é um bom pastor
que o Pai ao mundo enviou.
E não arrefece quem crê no Senhor,
mesmo em trevas não sente temor,
pois recorda o próprio Jesus
que, à morte na cruz,
pediu ao Pai pra perdoar.
E precisamos pensar
que Ele quis nos mostrar
que ser feliz é amar.
Pode acreditar.




sábado, 17 de novembro de 2012

Ponto Ômega




Nos últimos duzentos anos a expectativa de vida de homens e mulheres dobrou de quarenta para oitenta anos. Pelo ritmo das pesquisas a morte um dia será coisa do passado. Por enquanto ainda vigora a lei de que tudo tem seu momento para se desintegrar, inclusive nossas células, passando da ordem para a desordem. Inexiste imunidade contra o que se define como entropia e por essa razão morremos todos. A ciência busca reverter o caos e já se chegou a resultados interessantes.
A biotecnologia do rejuvenescimento quer garantir a alegria da juventude, num paradisíaco verão interminável. Ao isolarem no DNA os genes RAS2 e SCHP, cientistas bloquearam o envelhecimento e a morte das células. Através dessas experiências aumentaram muito a expectativa de vida de camundongos. Do ponto de vista científico, a semelhança entre eles e nós se aproxima de 90%. O grande desafio dos pesquisadores é nos manter jovens sempre, ao invés de nos preservar a velhice. Na fila da esperança os candidatos se valem da suspensão criônica, em geral confundida com a criogenia.
Na comunidade científica há quem assegure que o exponencial desenvolvimento do conhecimento humano aproximará a inteligência artificial do cognitivo natural. Projetam o ápice desse aperfeiçoamento num chamado Ponto Ômega, uma espécie de energia pura, quando alcançaríamos o nível máximo de consciência. A perfeição nos levaria a uma tríade Humanidade/Deus/Universo. Trocaríamos a dúvida atual se poderíamos viver para sempre pelo questionamento se deveríamos viver para sempre.
Se e quando isso ocorrer, outros valores substituiriam os estabelecidos pela mortalidade, seja nos relacionamentos amorosos, na ascendência e na descendência familiar, nas carreiras profissionais. Tudo precisaria de uma profunda reavaliação. Talvez por isso desde a mitologia mais remota os deuses invejem nossa finitude e alguns deles até tenham escolhido viver como reles mortais.

sábado, 10 de novembro de 2012

Imortalidade





Já ouvi dizer que, se arrancarem um pedaço de nós, jamais ficará uma porção menor. Perder alguém amado não nos impede de ficar com o legado maravilhoso do tempo de convivência. As melhores lembranças, os momentos mágicos de felicidade, de amor na plenitude, de dupla realização unificada pelo sentimento. Em detrimento da perda, resumida pelo vazio da ausência física, soma-se um acervo inesgotável de recordações positivas e de vivência feliz. 

Se as flores mais belas também murcham, perdem pétalas e folhas, nunca apagarão de nossas mentes sua imagem de cores vivas e vibrantes. Tanto quanto se torna impossível desfazer as maciças doses de alegria, os sorrisos abertos, os beijos enamorados, os abraços apertados resultantes das entregas dos buquês no ápice do frescor. As pétalas perdidas e as folhas caídas se juntarão a outras tantas a fertilizar a terra. O milagre do reflorescimento trará novos abraços, beijos inéditos e amores eternos.

O entrelaçamento da vida e da morte das flores, na terra fértil como a imaginação, tem a força da natureza fluindo. No modelo inacabado permitido à nossa percepção os limites distorcem a visão. Precisamos enxergar além dos antolhos, nos permitindo entender os truques da existência infinita. Viveremos em todos os lugares, todo o tempo, bastando para isso se lembrarem de nós. Pode ser por um dia ensolarado ou pelo cheiro da chuva; pelo canto dos pássaros ou pela música preferida; por pensamentos, palavras ou obras. 

O mistério da imortalidade não está restrito ao transcendental. As respostas surgem de nós mesmos. A chave sempre esteve conosco.