domingo, 31 de julho de 2011

Nossos temores

A vida é um trem fantasma dependente do nosso estado de espírito e das pessoas ao nosso redor. Os sustos fazem parte do nosso dia a dia, maiores ou menores em razão da concepção construída, da sustentação psicológica adquirida e da pressão exercida pelos oportunistas. Uns mais outros menos, desde cedo convivemos com temores, candidatos a figurantes no filme de nossa existência, postulantes a parceiros de nossa caminhada, às vezes ajudando, outras prejudicando.
Quando crianças elegemos alguns medos para nos atormentarem nos momentos de vazio da mente. Pelo inconsciente infantil desfilam diversos candidatos a assombração-mor, eventualmente enxergados pela imaginação fértil, ocultos pelo quarto escuro, disfarçados em bonecos, escondidos debaixo da cama ou atrás das cortinas. Muitos deles foram estimulados por adultos ignorantes, chantagistas de primeira hora, aproveitadores da inocência dos pequenos para fazerem valer seus interesses momentâneos. Vil sistema de trocas, repertório de quem não está preparado para criar ou se viu submetido ao mesmo tratamento.
O resultado desse mundo paralelo pode ser nefasto ou estimulante, conforme a condição psíquica no qual se lastreia. A projeção de figuras inexistentes, comum em crianças solitárias, faz amigos invisíveis com quem se conversa e se brinca, personificação de confidentes dos simplórios dilemas vividos pela criança. Pode ser um parceiro, uma namorada, com ou sem nome, a critério da fertilidade do território habitado.
As ameaças, os monstros, o saco de maldades aberto toda vez que alguém considera relevante, esses sim podem produzir efeitos nocivos, marcando silenciosamente e, não raro, exigindo correção no futuro, sob pena de acompanharem a mente madura pelo resto da vida. Pior, influenciando em decisões difíceis, refletindo em comportamentos doentios, quem sabe ocasionando tragédias pessoais ou coletivas.
Não fui perseguido ou pressionado por figuras malévolas na minha infância, período do qual guardo as mais interessantes recordações. Superei o medo de escuro bem cedo, logo ao alcançar o interruptor na parede. Até os sete anos filho único, criei assessores para a hora da brincadeira, o colega Alfredinho Carrapa e a minha namorada Fufiralfa. Tão rápido quanto surgiram, se dissiparam. Ocuparam o mesmo espaço dos personagens de Walt Disney pintados com perfeição nas paredes do meu quarto, obras de arte de um brilhante artista amigo do meu pai. Amores eternos enquanto duraram.
Na idade adulta me deparei com os temores de praxe, seja a dúvida sobre a carreira ou a responsabilidade na constituição da família, até mesmo a morte precoce. Esse último ocasionado pelo súbito óbito do meu pai, no viço dos seus quarenta e um anos, que precisei superar ao longo do tempo, fugindo dos sobressaltos. Olhando para o umbigo, como se costuma dizer, tenho a impressão de não fugir da média. Se não sou um herói vencedor de demandas, pelo menos sou capaz de alvejar meus dragões com a lança dos guerreiros.
Hoje, às vésperas do outono das minhas estações, pouco me assombra. Para não dizer que saio incólume, tenho dois fantasmas, a loucura e a solidão. Não sei qual dos dois é o maior. Na dúvida de estar resguardado, conto com a proteção divina, inspirado pelo padroeiro do dia, Santo Inácio de Loyola, o imbatível lutador que não escolhia quimeras nem adversários, os derrotava com seu despojamento e bravura. Muitos dos ingredientes de minha formação vieram do colégio com o nome dele, instituição vicejada pela semente de Santo Inácio. Também por isso não sou temente a muita coisa.

sábado, 30 de julho de 2011

As linhas nem tão tortas

Vendo algumas cenas de trânsito nas maiores cidades brasileiras, podemos ter noção do nível de estresse a que estamos submetidos. Se fossemos aqueles observadores da prefeitura, monitorando as telas de nossa cidade, ao acionar o zoom mais aproximado teríamos uma história a cada esquina, a cada minuto. Pelas tortuosas artérias do nosso caminho, passa boi, passa boiada, tocada pelos guardas de farda cáqui. Em suas armaduras de tamanhos e modelos diferentes, eles se enfrentam numa guerra sui generis, na qual não há vencedores e todos são vítimas.
Os motoristas mutantes transformam seu tamanho e sua coragem dependendo do veiculo conduzido. Um cidadão franzino encarapitado na boleia de seu caminhão, ônibus ou caminhonete assume proporções tão gigantescas quanto os seus problemas e descarrega nos veículos menores a ira acumulada. Os gladiadores do asfalto se enfrentam com fúria e destemor, encarando cada ultrapassagem, cada fila furada, cada cruzamento obstruído como a disputa final de suas vidas.
As buzinas constituem um capítulo à parte. Urram por trás dos elmos de quatro rodas com a força dos pulmões cheios, numa vociferação proibida a menores. Seu destempero explode segundos após a luz verde acender, mal humoradas por natureza e atrasadas para o confronto da próxima rua. Esganiçam suas gargantas roucas pela repetição doentia, incomodam doentes e idosos, sorriem do caos instalado. Sua missão é ganhar no grito.
A velocidade tem seu valor nas lutas veiculares. Além de representarem superioridade sobre os antagonistas, conseguem atalhos pelos acostamentos e passagens proibidas. O simples ronco do motor, som gutural e ameaçador, transmite um código de combate, um ranger de dentes de animal selvagem. O que significado do aviso é a iminência de um ataque incisivo, com risco de morte. Portanto, se faz necessária maior atenção.
Evidentemente, não se encontra a menor educação nos embates. A lei é a do mais forte, do mais esperto, do mais valente. Placas e sinais luminosos não têm o menor valor, pois se inferiorizam ante a volúpia avassaladora de quem busca descarregar suas mazelas protegido pela couraça movida a combustível. Os envolvidos nessa contenda se mostram dispostos a matar e morrer, talvez porque imaginem não ter mais nada a perder. A luta não pode parar.
Enquanto isso contabilizamos mortos e feridos, sejam agressores, agredidos ou meros acompanhantes, às vezes apenas espectadores que caminham nas calçadas ou atravessam as vias públicas. As estatísticas apresentam índices alarmantes, mesmo diminuídos pela redução do consumo de bebidas antes do enfrentamento, segundo as novas regras da disputa. O quadro é dantesco.
Costuma se atribuir ao divino a escolha das palavras que contam a nossa história. Quando o relato não nos atende, preferimos considerar que foi escrito certo por linhas tortas. Tentamos encontrar em metáforas as explicações para os equívocos da humanidade. No caso do trânsito, tortos são os corredores sombrios que percorremos na mente.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Vencer, vencer, vencer

Há quem não entenda, há mesmo quem recrimine, há quem chame de alienação. Sou da geração “panis et circenses”, sou dos apreciadores do “ópio do povo”, anestésico das dores da vida, panaceia de todas as dificuldades. O corpo maltratado pelo tempo, sofrido pelo peso de quase seis décadas. Estou perto de vinte e cinco mil dias teimosamente me mantendo de pé, embora concebido para andar de quatro. Apesar de tudo preservo a alma intacta, invicta, soberana. A cabeça vai bem, obrigado. Responde aos desafios da memória com a rapidez de um jovem e a lucidez de um experiente senhor.
Vi muita coisa de bom grado e de melhor grau, do graúdo ao gradual, valentia e covardia andando juntas. Com a licença dos poetas, mantive a mente aberta, a espinha ereta e o coração tranquilo, fazendo tudo valer a pena, pela minha alma não ser pequena. Não tenho mágoas nem inimigos, quando muito adversários. Realimento o espírito com pequenos e grandes prazeres, indistintamente.
Renovo a energia com vitórias maiúsculas, consagradoras, marcantes, inesquecíveis. Aprecio em especial as transcendentais, aquelas transformadoras de ânimo, operadoras de mudanças no humor, verdadeiras redentoras dos presságios negativos. Contra qualquer conjunção de fatores elas se impõem pelo vigor de fileiras avassaladoras. Épicas e comoventes, reparam cicatrizes antigas e aplacam a sede de vencer. O sangue sobe aos olhos e os embaça, os dedos se crispam, as veias estufam e a voz supera o nó asfixiando a garganta. A libertação do jugo dos tempos é coletiva, heterogênea, impessoal. Mas também unifica, solidariza e aproxima. Num instante somos um e noutro somos todos, diversos, estranhos, desiguais.
O grito de gol vem do mais profundo recôndito do peito, explode em meio a labaredas, tem alto poder de propagação. Trata-se de uma força desconhecida, de grande magnitude, represada sob risco de morte. Depois de uma partida de futebol, embora os problemas persistam, a vida parece diferente. Ficamos mais fortes, mais confiantes, mais otimistas, mais felizes. Nada altera o curso do destino, apenas nos sentimos em condições de retraçar o caminho. Muitas vezes funciona, abrindo perspectivas imprevisíveis. Não resta a menor dúvida de que o futebol perdoa os que fingem odiá-lo e abençoa os que demonstram amá-lo.
Semelhante ao desfile das escolas de samba, cuja duração se dá de forma mais restrita, o futebol é democrático, tem o condão de mexer com ricos ou pobres, sadios ou doentes, velhos ou moços, fracassados ou exitosos. Ele serve a todos, abraçando causas nobres ou escusas. Mais do que qualquer outra coisa, ele fortalece qualquer um. Foi assim que dormi realizado após o Flamengo 5 x 4 Santos e acordei poderoso no dia seguinte. O problema passa a ser dos meus problemas, quando uma grande vitória me faz superior a eles.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Cabo de guerra

Diversas pessoas se solidarizam comigo mal eu comento alguns problemas sofridos com uma determinada operadora de TV a cabo. Desde a dona da papelaria que copiou as faturas do serviço objeto de minha reclamação, até amigos e conhecidos que sabem do assunto, todos, sem exceção, se estimulam a relatar algum imbróglio com a mesma empresa. Não deve, portanto, ser coincidência. Aliás, eu já chegara a essa conclusão pelos reincidentes casos de mau atendimento e desorganização ocorridos comigo.
Além de várias dificuldades de ordem técnica, minha maior reclamação diz respeito à recorrente atitude da operadora me vender “gato por lebre”. Há três anos me ofereceram um serviço novo que obrigava a instalação de um equipamento específico. Pela novidade fui informado de que passaria a pagar um pequeno valor adicional na mensalidade, o que ocorreu a partir do boleto seguinte.
Passado mais de um ano, surpreendeu-me a cobrança de um valor mais significativo, a título de adesão pelo serviço que eu já dispunha. Ao reclamar, por três meses seguidos, o referido valor foi estornado, sob a alegação de erro no lançamento. Após o quarto mês consecutivo do equívoco, desisti da reclamação telefônica e fui pessoalmente à sede da empresa. Depois de um péssimo atendimento e sem jamais ter sido comprovada a minha ciência daquele ônus, determinou-se a intempestiva cobrança, que cumpri religiosamente, para atestar minha boa fé e ter o direito de reclamar.
Findas as prestações mensais, solicitei da empresa uma comprovação da minha concordância com aquele compromisso. Pasmem vocês, eles me disseram que a gravação comprobatória fora apagada após três meses de sua execução. Ou seja, decorridos treze meses do fato que defendo desconhecer, passaram a me cobrar com base em um registro extinto dez meses antes. Esse causo caberia como uma luva na coluna do saudoso Almirante, a famosa “Incrível, Fantástico, Extraordinário”.
Diante de tanto descaso com um cliente e tendo me submetido a uma recente situação bem semelhante, cuja solução se deu através da intervenção da agência reguladora, a pergunta que não quer se calar é como confiar na prestação de serviços em geral? E você já passou por algo parecido?

terça-feira, 26 de julho de 2011

O DNIT não é na Noruega

As tragédias pulam das manchetes da euforia midiática para o colo dos leitores sequiosos pelas novidades. Vivemos movidos pela ansiedade da atualização simultânea, consumidos pelas inúmeras alternativas de informação imediata. Engenhocas de todos os tipos e modelos nos acompanham dia e noite, trazendo notícias que desrespeitam nossos horários atendendo à volúpia dos fusos vanguardistas.
A velocidade dos fatos permanece a mesma, enquanto a divulgação se disseminou assustadoramente. Não escolhemos as notícias, apenas avaliamos se queremos ler uma ou outra, dependendo do que mais nos atrai. A classificação de nossos interesses acelera a necessidade de reposição das informações. Não podemos regular, por exemplo, quantos escândalos sobre corrupção no Brasil nos atingirão, tal a enxurrada de denúncias nos atropelando diariamente. Quando algo se supõe insuperável, vem algo novo desmentir. No mergulho da inadiável faxina feita no DNIT em Brasília submerge também a razão, ao sabermos que agora se exigirá ficha-limpa de quem ocupe os cargos de confiança naquele órgão. Agora?! E em todos os outros? Lembrei do político flagrado num comportamento prostituído, momento a partir do qual prometeu rever seus conceitos. Que exemplar!
Assim, nem bem se apurou com a devida profundidade o possível envolvimento de um governante com empresários interessados em negócios públicos, eis que já aflorou outra série de mazelas administrativas num ministério dos mais importantes. Tornou-se hábito, não o que faz os monges das improbidades, mas aquele que nos acostuma e nos leva a acabar esquecendo a desfaçatez de ontem por categorizarmos a maracutaia de hoje. Ao desvio de recurso público alocado para recuperar cidades destruídas pelas catástrofes se sobrepõe a compra de lotes destinados a assentamentos de trabalhadores rurais, que substituímos pelo propinoduto do Ministério dos Transportes, que dá lugar ao dinheiro público investido na Copa do Mundo de 2014 e por aí vai. Sai um de cena e entra outro, num revezamento incansável de achacadores.
Há quem diga que o Grande Arquiteto do Universo foi equilibrado ao definir o que colocar em cada país. Alegam que Ele nos premiou com a natureza invejada pelo mundo, além de nos poupar de acidentes naturais mais graves, em contrapartida a nos aquinhoar com a índole ruim dos que zelam pelo diversos níveis de gestão estatal. À medida que o tempo vai passando, tudo indica ser forçoso concordar com esses argumentos. Não nos deparamos com tsunamis, furacões ou terremotos. Entretanto, somos vítimas frequentes da flagelação pelos atentados à moral, à ética, às leis, sob enfoques separados ou juntos.
Por indiscutíveis diferenças culturais e históricas, não é comum nos defrontarmos com desequilibrados que perpetrem ataques a centenas de inocentes, qual os de Oslo. O caso da escola em Realengo trata-se de uma exceção em escala bem menor. Por outro lado, a nossa capacidade de reação aparenta ser inversamente proporcional ao nosso limite de indignação. Enquanto mais de dez por cento da população da capital norueguesa foi às ruas para homenagear as vítimas da hedionda chacina, por aqui mantemo-nos distantes da realidade e quase cúmplices das manchetes.
Por essas e por outras, o Haiti é aqui e o DNIT não é na Noruega.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Prazo estendido

Para comemorar a chegada do meu filho de uma viagem, ontem abri uma caixa de cervejas premium que mantinha cuidadosamente reservada em minha despensa. Coloquei algumas garrafas no congelador pela manhã, enquanto eu acelerava a preparação do almoço. A idéia era transferi-las para a geladeira assim que estivessem na temperatura adequada, portanto uns trinta minutos depois.
Enquanto finalizava a receita, embalado pelos acordes de John Coltrane, resolvi avaliar a bebida que serviria ao pessoal mais tarde. Uma delícia, refrescante, leve e saborosa. Nem mais nem menos do que eu esperava. Ao terminar a degustação daquele néctar dos deuses, cumpri o ritual de lavar a garrafa antes de separá-la para o lixo seletivo. Eis que me deparo com a data de validade no rótulo: 12/05/2011.
De imediato concluí pela impossibilidade de um produto tão delicioso estar vencido, impróprio para o consumo, por assim dizer. Só para confirmar bebi outra, não menos suculenta e prazerosa. O meu controle de qualidade acabara de aprová-la. Dentro da ética e dos princípios da boa mesa, avisei aos comensais sobre essa particularidade, deixando-os à vontade para outras opções de acompanhamento do prato. Afinal, sem grandes sofisticações, tratava-se de um almoço em família.
Após o almoço, satisfeito com a aceitação do cardápio e envaidecido pelo elogios ao cuidado com a preparação, me pus a refletir sobre a qualidade da cerveja, o vicejar de seu sabor, o seu tempo de maturação, sua curva de existência, seu declínio e seu fim. Isso impõe uma correlação com a existência humana que difere apenas pela indefinição prévia de data de término da validade.
Só o Grande Arquiteto do Universo conhece o nosso prazo de validade. Talvez nem lembre de tantos e, quem sabe por essa razão, alguns escapem da lista de chamada que Ele faz todo santo dia, a exemplo dos mestres que chamam por amostragem quando a turma é muito grande. O fato é que amadurecemos ao longo de nossa caminhada e, muitas vezes, justo quando estamos em nosso apogeu, somos considerados fora do prazo.
Torço que o “Degustador-mór” use o mesmo critério que eu, experimentando o sabor antes de considerar expirado o prazo previamente estabelecido. Sem provar não há como questionar a qualidade do produto. Se somos submetidos a provas diárias e exigentes, nada mais sensato que tivéssemos a oportunidade de demonstrar ao Criador a manutenção de nossas propriedades.
Então, fica a modesta sugestão, sem direito a retaliar, por favor. Nesse sentido, peço a ajuda de São Cristóvão, padroeiro da boa direção, que está mais próximo e é o homenageado do dia. Caso haja discordância da parte de Quem faz as chamadas diárias, prefiro esperar muito tempo ainda pela lembrança do meu nome. Mesmo com algum amargor, garanto que sou encorpado e tenho refinado sabor. Na dúvida, sugiro a degustação. À distância, evidentemente.

domingo, 24 de julho de 2011

Overdose

Que coincidência macabra o destino nos traz mais uma vez. Após alguns anos de bastante sucesso, muitas confusões e inúmeras polêmicas, a cantora Amy Winehouse foi encontrada morta num quarto, num roteiro comum a outros astros do cenário musical. A genialidade aprecia a cumplicidade da tragédia. Junto com o talento indiscutível, muitos diferentes costumam adicionar doses exageradas de exotismo e de exacerbação à receita de suas vidas.
Assim se repetiu com essa talentosa cantora de soul, jazz e rhythm & blues, cujo estrelato aos 19 anos, acelerou um processo de entrega ao vício do alcoolismo e das drogas, culminando com seu óbito precoce. A exemplo de Brian Jones, Kurt Cobain, Janis Joplin, Jimi Hendrix, só para citar os mais famosos, Amy encerrou sua trajetória também aos 27 anos. Ainda que a morte muito cedo ocorra em diversas circunstâncias, até em idades inferiores, a reincidência de semelhantes personalidades com esse tempo de vida parece no mínimo instigante.
Dizem que morrer é a mais certa de todas as certezas, simplesmente pelo fato de sermos finitos. As milagrosas fórmulas da juventude, supostas garantidoras de uma perenidade inexistente, se restringem a planos cosméticos que falseiam o nosso final. O natimorto, as moléstias e acidentes na infância mais tenra, os desastres da adolescência, enfim, todos os desenlaces prematuros nos chocam muito mais do que o caminho natural da velhice.
Entretanto, as overdoses e os suicídios dos famosos sacodem a nossa percepção de tal forma que viramos meio parentes de todas as vítimas do mundo, conhecidas ou não. Apenas a exposição permanente, numa época de mídia diversificada e global, nos aproxima demais de alguns expoentes. Impossível não nos sensibilizarmos com o fato de uma pessoa tão jovem e genial sucumbir diante de um adversário sobejamente conhecido por sua periculosidade. E mesmo com depoimentos e experiências de outros renomados usuários sobreviventes do fundo do poço, o ciclo inexorável da existência encurtada segue absoluto.
Não me considero habilitado a avaliar as razões de cada um, pois a natureza humana é, foi e será eternamente um mosaico muito complexo. As carências, ausências e estímulos que impulsionam alguém a um mergulho quase sem volta pertencem a um universo particular e hermético. A batalha pela sobrevivência é árdua em âmbitos distintos, pela pobreza, material ou espiritual, pela pujança ou pela fragilidade de quem luta. As armadilhas estão em cada esquina e independem de classe social, raça, cor ou faixa etária.
A dor maior não sente o usuário, imerso em sua dependência. Sofre muito mais quem o ama, aqueles que o cercam sem conseguir mudar a situação. Portanto, restará uma angústia, um sentimento de impotência, uma dúvida sobre quando, como e quem será o próximo escolhido. Nesse momento, em algum lugar da face da Terra, haverá um ser deixando a vida pelo mesmo motivo. Se anônimo, qual milhões que já se foram desde o início das eras, ficaremos apenas com a suposição. Se ilustre, renderemos homenagens e discutiremos o assunto até que ele nos enfade. A vida continua. Vamos permanecer ouvindo Amy, Hendrix, Jones, Joplin, Kobain e Morrison, gravados em discos e em mentes. E os outros?

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Muita luz

Respeito a crença de todos nesse espaço tão laico quanto esse país miscigenado. Sinto-me à vontade para escrever que há um lugar no Rio, em meio à selva de hostilidades e de intransigência, onde se pode respirar ar puro, tranquilidade e amor. Um oásis de espiritualidade e equilíbrio, fonte de energia para a recuperação do corpo e da alma. Uma pedra preciosa incrustada na montanha de problemas do dia a dia, um local de meditação e iluminação do espírito.
O acesso nos transporta a um cenário bucólico, uma espécie de área rural dentro da cidade, a minutos do trânsito caótico e do nervosismo em ebulição. Não raro passarmos por carroças, cavalos e outros animais, numa regressão gradual da tecnologia e da modernidade. Ao transpormos o portão de entrada nos obrigamos a desligar celulares, rádios e qualquer outro equipamento cuja frequência interfira no campo energético do local.
A paisagem é sublime, uma tela de natureza virgem emoldurada por quase todas as pessoas de branco, a simpatia e a solidariedade se sobrepondo a tudo. A paz se observa em cada gesto, em cada olhar, em cada palavra. O objetivo principal de apoiar o próximo se expressa no tratamento generoso de todos a todos, sem distinção de classe social, raça ou cor.
O som ambiente transmite harmonia, purificando a mente e favorecendo a absorção de tanta positividade. Espaçadamente, se ouve uma mensagem pausada e inspiradora, estimulando a reflexão. Tudo conspira a favor da reenergização e do fortalecimento da essência que nos mantem vivos. É impossível negar a contemplação da felicidade, seja qual for o motivo que nos leva até ali.
No silêncio de minhas orações me flagrei observando algumas borboletas que vagavam sobre uma fonte de água corrente. O bailar de suas asas coloridas elevou meu pensamento para a imensidão do universo. A pequenez de minhas súplicas se inferiorizou ainda mais. Voltei à realidade no chiar dos micos que se enfileiravam dos cipós aos muros, demonstrando intimidade com os presentes. Um recado de Darwin religou meus contatos.
Religar, religare, religião. Nem sempre a fé nos guia, nos obrigando a enxergar a vida com a insensibilidade de quem busca respostas imediatas, sem explicações inexatas e com esclarecimentos simples. Na falta de um manual, de um padrão, temos como alternativa internalizar a visão, permitir a introspecção, descortinar o caminho.
O Lar de Frei Luiz, a querida Boiúna, aquele sagrado reduto de paz e fraternidade, pode deixar algumas questões sem resposta, em especial àqueles que não percebem os sinais menos evidentes. Lá nos sentimos fragmentos de um conjunto, frações infinitesimais da unidade, poeira das estrelas. Naquela ilha de placidez, estreitamos nossos laços de amor ao próximo, nos completamos como seres e descobrimos o sentido de uma existência mais plena. Quase desfrutamos da perfeição, assunto de outro capítulo, noutro plano.

terça-feira, 19 de julho de 2011

Jukebox

Tenho me divertido muito com a página do grupo do Santo Inácio no Facebook. Estudei naquele grande colégio do Rio de Janeiro por quase dez anos, de 1965 a 1974, período de formação no qual fiz grandes amigos. Até hoje nos reencontramos eventualmente, nos contatamos todo dia e relembramos situações vividas à época da escola. É divertido revermos fotos de nossa adolescência, observando a ação inclemente do tempo e testando a memória ao desvendarmos os personagens de cada uma.
Suponho que muitos façam o mesmo em seus respectivos grupos escolares. Deve ser comum se manter acesa a luz que ilumina o fundo desse corredor cada vez mais longo que nos liga ao passado. À medida que o tempo passa, temos uma dificuldade maior para enxergar com nitidez imagens tão caras e que nos fazem um bem enorme à alma. A união de todos os lumes sempre ajuda a resgatar pontos mais obscuros, trazendo informações interessantes aos que se dispõem a exercitar um pouco mais a mente.
Com certeza seria muito mais complicado, talvez impossível, unir tantos elos sem a ferramenta da internet. Hoje, embora nossos colegas estejam espalhados pelo Brasil e pelo mundo, a distância se limita a um clique do mouse, a um toque no touch pad. Navegamos num mar de espelho, revolto apenas pelas interferências das conexões. Somos uma tribo cercada por idiomas diferentes, garantindo o dialeto intacto, defeso pelo diálogo permanente. Atualmente, há mais estreitamento nos contatos do que nos tempos de colégio, tempo das conversas pessoais ou por telefone. Não tenho registro de telegramas entre nós.
Ontem o papo nos levou aos programas do Big Boy, uma versão de DJ de então. Imediatamente chegamos ao link http://www.youtube.com/watch?v=cvfglk_xgnM. Foi uma catarse, cada um fazendo seu registro e resgatando algo de interessante que envolvesse a figuraça. Aliviou as tensões do dia e me deixou mais leve só por iluminar trechos do corredor, vendo o mentor do “Cavern Club” e do “Ritmos de Boate”, que escutávamos pela Rádio Mundial AM, porque nem existia FM. Encerrei os trabalhos da segunda-feira com a mente aberta, a espinha ereta e o coração tranquilo, conforme definiu bem o poeta.
Essa inspiração musical me levou a outro link, relacionando o ano de nascimento com os sucessos do rádio. No meu caso e na maioria dos meus contemporâneos de escola, basta acessar http://upchucky.org/JukeCity/1956/OldJukes/player.htm. Porém, está disponível um intervalo de 1940 a 1999, sendo preciso só substituir o ano no link.
Afinal, a vida de todo mundo tem trilha sonora e não passa de uma imensa jukebox.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

LUBLIN e MAJDANEK

Hoje tomo a liberdade, com a devida autorização, de reproduzir aqui nesse espaço um texto que recebi de um grande amigo meu, Oscar Goldemberg. Trata-se de uma pérola escrita pela filha dele, a querida Luiza Goldemberg, em viagem pela Polônia no momento. Nada a acrescentar ao tocante relato feito pela Luiza, a não ser o agradecimento por compartilhá-lo conosco. Assim, disponibilizando o texto no blog, amplio a gentileza que o Oscar e a Luiza tiveram comigo.
"Lublin, coração do povo judeu e do movimento racídico. Aqui viviam 43 mil judeus (30% da população) e hoje não os vemos mais. Foram dizimados pelos nazistas. Visitamos o antigo cemitério judeu racídico, vimos suas lápides e aprendemos um pouco mais sobre esse movimento que rompeu com outras correntes. Por outro lado, no cemitério novo não há mais lápides, pois os nazistas as retiraram para as fazer de chão nos campos. Isso mesmo, o mesmo chão que os judeus pisavam nos campos lá fora, talvez a lápide de um parente, um amigo ou um conhecido. Em seguida ao cemitério, visitamos a Yeshivah e o antigo gueto, no qual pudemos observar casas lindas já reformadas e um antigo orfanato onde as crianças foram brutalmente fuziladas. Incrível pensar como é possível.
Majdanek, tudo é original e ninguém quer entrar. Por isso, somente uma cerca exterior basta. O monumento gigantesco na entrada nos dá as boas vindas e coloca em nossos ombros o peso desse lugar sombrio, embora coberto de verde e flor. Descemos a rampa, caminhamos entre pedras e subimos escadas; “Tão fácil entrar em Majdanek, mas como é difícil sair daqui”.
Aqui a vida e a morte estão lado a lado. Tudo começou como um campo para prisioneiros soviéticos e acabou com o extermínio de aproximadamente 80 mil judeus. Era tudo pântano, cor marrom, feio, cheio de lama; hoje vemos verde, flores e animais, elementos que se existissem naquela época teriam servido para, pelo menos, enganar a fome alarmante que dominava os corpos daquelas pessoas que lá estavam.
Vamos entrando e conhecendo cada parte desse terror. A barraca de desinfecção, logo na entrada, não me causou grandes emoções. Acho que ainda não conseguia sentir o que se passava. Outros sentiram, alguns choraram, mas todos de alguma forma ali se solidarizaram com as vidas que, divididas por uma porta somente, foram selecionadas para mais um dia na Terra. E se eles pudessem escolher por qual porta sair? Infelizmente não lhes foi dada a opção.
Adiante estavam os armazéns e me deparei com o que mais temia e duvidava: os sapatos. Ao entrar senti o odor. Um cheiro diferente e misturado de madeira, suor, lama e dor. Impossível contabilizá-los! Todos ali, na minha frente, amontoados em grades com 120 metros de comprimento, 2 metros de largura e 1,8 metro de altura. A pilha era maior que eu e cada um representava uma vida que já não existe mais. A princípio, não era possível distingui-los, mas andando nos corredores podíamos ver os detalhes de cada um, imaginar como era o seu dono, sentir a presença e o desespero ali presente, a cada passo dado. Não quis nem me aproximar muito das colunas maiores, sentia que cada sapato era um braço e uma mão estendida pedindo ajuda, tentando contato através das grades. Por fim, encontrei um sapatinho menor que a minha mão. Era de uma criança que consegui imaginar perfeitamente e tive o privilégio de lhe tocar e fazer um carinho através do seu sapato. E eu sei que, não importa onde sua alma está, ela sentiu esse carinho terno e sem pena, um carinho que talvez essa criança não tenha recebido em vida. “Nós somos de alguma forma os sapatos que ficaram” e não podemos deixar esses sapatos perderem sua vida. “Já vimos crianças sem sapatos, mas sapatos sem crianças foi a primeira vez”.
Aqui muitos morreram. Olho em volta e vejo os homens trabalhando, magros e sem cabelos. As flores daqui, por mais belas que sejam, não conseguem abafar a tristeza nem a escuridão existente. A cada passo me sinto mais dentro desse mundo bizarro.
Agora chegamos aos barracões, vi as camas e senti a mesma coisa que com os sapatos. Tenho medo de tocar e perturbar quem ali dormia, assim como tenho medo de chegar perto e sentir os corpos. Ouço os rugidos de fome e dor. Horrível. Até o calor aqui dentro, no verão, é insuportável. Sento-me ao chão, mas não tenho coragem de ficar de costas para as camas, de dar as costas para isso tudo. Ouvimos histórias e percebemos que ali se viviam duas guerras, uma com os nazistas e outra com os outros prisioneiros, mas essa era pra sobreviver. Lutava-se por um lugar para dormir, por um prato de sopa ou por um lugar na fila.
Por fim, chegamos ao monumento de sete toneladas de cinzas. Cinzas dos corpos queimados nos fornos logo à frente. Percebi que essas almas não estão aqui. Elas não andam pelo campo porque aqui elas não existiram. Essas se marcam presentes em cada objeto, nas camas e nos sapatos, porém há de se estar perto para sentir, pois já estavam tão fracas que não se pode percebê-las ao redor. Cada flor aqui é uma vida. Uma vida que aqui se transformou, saiu de um corpo que sofre para uma memória e para outra forma de vida. Espero que, pelo menos agora, eles estejam livres e em paz."

sábado, 16 de julho de 2011

No tempo do Beto Rockfeller

Sou do tempo da "Redenção", do "Direito de Nascer" e do "Sheik de Agadir", mas nunca foi do meu gosto ficar acompanhando essas histórias utilizadas pela TV para nos escravizar, dia a dia, alavancando a audiência do programa apresentado em seguida. Contudo, não sou daqueles mais radicais e reconheço ter assistido, ainda que não assiduamente, alguns sucessos da dramaturgia televisiva nacional. Por outro lado, não vejo novelas há muito tempo, desde que o merchandising e a escalação banalizada do elenco passaram a ser prioridades. Os enredos são tão pobres hoje em dia, que resolveram resgatar folhetins muito antigos, cujo sucesso se deveu aos atores importantes e à trama bem elaborada.
Uma novela que marcou época quando eu era garoto foi “Bandeira 2”, um clássico que desnudou um universo desconhecido para muita gente, as entranhas do jogo do bicho e das escolas de samba cariocas. Protagonizado por artistas de primeiríssima, a destacar os bicheiros rivais Paulo Gracindo(Tucão) e Felipe Carone(Jovelino Sabonete), Marília Pêra(a porta-bandeira Noemi) e um jovem José Wilker(Zelito, filho do Tucão) dando um show de interpretação em seu primeiro trabalho na TV. Isso sem falar em Grande Otelo(sambista Zé Catimba) e Milton Moraes(Quidoca). Sob os grilhões da censura, auge da ditadura em meados de 1971, a produção foi submetida a frequentes mudanças, culminando com a morte do Tucão, em razão de incomodar aos militares o sucesso alcançado pelo contraventor junto ao povão. Destaque para a Imperatriz Leopoldinense, escola pequena de Ramos e ainda desconhecida, que alçou voos muito mais altos após ambientar várias cenas.
Maior impacto causou “O Bem Amado”. A compra da TV colorida na minha casa, em meados de 1972, foi um evento de grande repercussão. Fui um dos precursores, pois minha tia trabalhava na GE e viabilizou o aparelho a preço de custo. Meus amigos se reuniam no meu apartamento para testemunharem os então raros programas não transmitidos em preto e branco. O primeiro jogo foi Flamengo x Madureira, estreia do Manto Sagrado em preto e vermelho na TV, Fla 4 x 1, diga-se de passagem. O colorido em “O Bem Amado” transcendeu os limites do PAL M, democratizando o texto ferino de Dias Gomes, uma crítica bem humorada ao Brasil da ditadura. O dramaturgo sintetizou os políticos do país na figura de Odorico Paraguaçu, um prefeito mal intencionado e corrupto. Mais estrondoso sucesso de Paulo Gracindo, na interpretação magnífica de um personagem cujas falas antológicas caíram no gosto popular. Por exemplo, o uso exagerado de advérbios inventados como “pratrasmente” e outros. Gracindo capitaneou um elenco fabuloso, composto por Lima Duarte(Zeca Diabo), Ida Gomes, Dirce Migliaccio e Dorinha Duval(as irmãs Cajazeira), Milton Gonçalves(Zelão), Emiliano Queirós(Dirceu Borboleta), Jardel Filho(médico local), Carlos Eduardo Dolabella(jornalista Neco Pedreira), a jovem Sandra Bréa(filha de Odorico), entre diversos famosos. Tudo isso ao som de uma trilha sonora inesquecível de Toquinho e Vinícius.
Exatamente pela trilha musical, a novela mais marcante para mim foi a incomparável “Beto Rockfeller”, de Bráulio Pedroso, em 1968. Aos doze anos, fui atraído por “I started the joke”(Bee Gees), “You’ve got your troubles”(Jack Jones), F comme femme(Adamo) e inúmeras maravilhosas músicas. Elas embalavam as picaretagens do Beto, vivido por um principiante e divertidíssimo Luiz Gustavo, magistral no papel de um trambiqueiro que tentava dar um “golpe do baú”. Ele contava com a ajuda de um amigo mecânico, Vitório(o grande dramaturgo Plínio Marcos), e gravitava em torno da Lu(Débora Duarte), da Renata(Bete Mendes), da Neide(Irene Ravache), da Marília Pêra(Manuela), da Maitê(Maria Della Costa). Todos dirigidos pelo Lima Duarte. Foi uma quebra de paradigmas no gênero, desde os temas musicais até a linguagem urbana cheia de gírias. Simplesmente sensacional.
Atualmente, quem vê novelas se contenta com relançamentos estrelados por modelos, caras bonitas e muita propaganda subliminar. Sorte a minha, que não dependo delas para ter boas recordações.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Complexo de vira-latas

Quando o prefeito do RJ divulgou o local do Centro de Imprensa, o presidente do Comitê Organizador da Copa do Mundo 2014 ficou enfurecido, alegando que essa iniciativa só ele poderia tomar. Enquanto isso, ontem à noite fui ao Aeroporto Internacional Tom Jobim. Como o embarque de quem viajava seria às 21:00 num vôo internacional, me programei para chegar lá às 19:00. Ao entrar na pista de acesso ao aeroporto, logo que se sai da Estrada do Galeão, estava tudo parado. Levei um susto, mesmo considerando um mês de férias, não se justificava.
O pesado congestionamento se arrastou quase até a Torre de Controle, momento em que entendemos o motivo. Cinco ônibus e alguns outros veículos, todos estacionados na pista da direita e guardados por um motociclista fardado, estreitavam o fluxo do trânsito. Provavelmente tinha algo a ver com as Olimpíadas do Exército, imagino. Não sei o que era, mas foi um absurdo que alguém tenha tido a brilhante ideia de tumultuar o acesso ao aeroporto mais importante da cidade. Se aguardavam algum desembarque de delegação, aqueles veículos poderiam e deveriam estar parados na área de serviço, uma pista mais à frente da Torre e certamente vazia naquele horário.
Superado esse pequeno senão, fizemos o retorno e me dirigi ao estacionamento do Terminal 1. Não foi possível entrar, porque uma placa informava que o estacionamento estava lotado. Eram 19:00, retornei, deixei o passageiro no portão do aeroporto e fui procurar onde estacionar. Parei no estacionamento do Terminal 2, fiz uma bela caminhada de um terminal ao outro, podendo observar mais de perto os problemas. Passei por esteiras de circulação em manutenção, uma enorme aglomeração na área de embarque doméstico e outras dificuldades às quais não dei a devida atenção porque minha prioridade era me despedir de quem eu deixara.
Tão próximos de eventos mundiais, convivemos diariamente com notícias sobre as fortunas envolvidas na organização dos mesmos. Lembrei de Nelson Rodrigues, criador da imagem do “complexo de vira-latas”, superado ao conquistarmos o Campeonato Mundial de Futebol em 58. Nada contra os amados SRD, em especial porque tenho uma bem querida aqui em casa, a Nina, cuja foto hoje enriquece o blog. Mas o tal “complexo” começa a me rondar outra vez. É angustiante uma situação como essa vivida ontem para chegar a um dos mais modernos aeroportos brasileiros, considerando ainda nem de longe enfrentarmos as complicações de 2014 ou de 2016. Defenderão os otimistas haver muito tempo para a solução dos problemas. Não, não há. As reformas estruturais necessárias são muito profundas e requerem planejamento, organização e prazo que inexistem. E não se restringem a aeroportos.
O dinheiro circula há tempos por conta dos Jogos Olímpicos e da Copa, coisa de quem tem o mais requintado pedigree, num contraponto às perspectivas sombrias do cenário de nossa ultrapassada infraestrutura. Antecipadamente envergonhado diante do apresentado pela Alemanha e pela África do Sul, começo a me sentir um SRD.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

O dia de glória não chegou ainda

Poucos sabem o significado formal do 14 de julho para o povo francês. Diferentemente da apregoada comemoração da Queda da Bastilha, dia envolto em violência e linchamento, em 1880 os deputados franceses escolheram a Festa da Federação, ocorrida em 14 de julho de 1790. A data cívica diz respeito ao momento de reconciliação do povo com a burguesia, aproximando a monarquia da nova Constituição e efetivando a República.
Só a partir de então, numa confraternização sem contestar a monarquia mas ratificando a revolução, com a presença do povo e do exército, foram superadas as feridas ainda não cicatrizadas e proclamaram a união nacional. Apesar do sentimento conciliador do parlamento, do ponto de vista prático, entretanto, o mundo todo considera a tomada da Bastilha pelo povo como o marco histórico daquela nação.
Muito já li e ouvi a respeito da construção das grandes nações. É costume dizer que a sedimentação de uma potência mundial ocorre em grandes revoluções, normalmente banhadas em sangue. Sob o rigor dos fatos, vários dos países mais desenvolvidos acompanharam essa regra. O tema é por demais polêmico e não vou me furtar a opinar a respeito.
Ao convivermos com os achaques conhecidos, a desconsideração da ética e da moral, os escândalos sucessivos e quase diários, podemos supor que a adoção de um caminho de confronto no passado fosse a panacéia para os nossos problemas. Não concordo, pois sempre haverá espaço para o diálogo.
Mudanças mais significativas dependem de amadurecimento por longo tempo, plena democracia e discussões amplas com participação do povo através de seus representantes eleitos. Buscar o consenso é um exercício de cidadania e uma demonstração de evolução social. A truculência deixa cicatrizes muitas vezes profundas e incuráveis, lembranças mal resolvidas ao longo do tempo.
Escutar a Marselhesa é agradável e inspirador. Melhor mesmo seria que toda terceira semana de novembro, quando a safra do Beaujolais embarca para o mundo, qualquer cidadão no Brasil, na África ou na América Central já tivesse a certeza de poder degustá-lo acompanhado de um queijo brie. Nesse caso, o espírito da Revolução Francesa estaria disseminado pela face da Terra. Portanto, lavado no sangue de tantas mortes, em 14/07/1789 o dia de glória não chegou. Com o Beaujolais e o queijo brie mais democráticos ele chegaria.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Nem tudo que reluz é ouro

Nada melhor do que um dia após o outro, diz a minha sábia mãe. Vemos acontecerem coisas tão inacreditáveis e consideramos não haver mais a menor perspectiva de surpresa, quando de repente algo nos surpreende. Assim a vida vai seguindo seu rumo interminável, mudando apenas as personagens e as épocas. O preço cobrado por ela é a substituição dos céticos por quem ainda não experimentou o inusitado de suas revelações.
Nessa linha de raciocínio, há uns vinte anos eu acompanhei bem de perto o lançamento do serviço de telefonia móvel. Na verdade, fui um dos primeiros usuários, por dever de ofício. A novidade me transformou num ET de terno e gravata ou num agente secreto nem tão secreto, chamando a atenção com uma espécie de maleta que trazia acoplado um aparelho de telefone. Passei a conseguir falar com quem quisesse, onde estivesse, sem precisar do telefone público. Sensacional!
Rapidamente, a lei da mão e contramão sacudiu a minha lógica. Passei a ser localizado em qualquer lugar e em qualquer horário, exceto quando a interrupção do sinal impedia. Desde então essa desculpa vale para o fato do aparelho ser desligado por conveniência. A novidade estendeu de forma absurda a minha rotina, me deixando mergulhado em preocupações até então limitadas.
Lembro de ter lido um artigo tratando das inúmeras vantagens daquela parafernália que eu carregava, em especial por encurtar distâncias e acelerar decisões. A falácia maior daquele texto dava conta do enorme ganho de tempo, intermináveis momentos destinados ao lazer e ao descanso. Ledo engano.
Em tudo na vida há prós e contras, também sempre apregoou a minha mãe clarividente. E essa história do telefone móvel trouxe agilidade e praticidade, mas também escravizou a humanidade, dependendo da ótica que se queira enxergar. Atravessou o século a liberdade tolhida de quem faz uso dessa maravilha eletrônica. Até hoje, quando os modernos, pequenos, muito mais eficientes e versáteis aparelhos se multiplicaram por milhões de incautos que pagam bem mais barato para se acorrentarem.
Vemos pelo mundo uma legião de algemados às mensagens, às notícias, às twittadas, aos chefes, aos funcionários, aos pais, aos maridos, às mulheres, enfim, a tudo que possa restringir de certa forma a vida mais tranquila. Ganham e perdem, de acordo com as circunstâncias, com uma tecnologia que se aprimora a cada dia, para o bem e para o mal.
E se desconhecemos, ainda, os malefícios à saúde física, já sabemos dos reflexos à saúde mental. Diante de tamanha e doentia exposição, embutindo riscos como falar ao celular atravessando a rua ou dirigindo um veículo, psicólogos oferecem tratamento para livrar o aflito dessa agonia.
Desculpem encerrar intempestivamente, mas estão me ligando no rádio e no celular ao mesmo tempo. Deve ser algo muito importante. Pode ser um problema exigindo solução imediata ou um aviso sobre um sequestro relâmpago de um parente.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

E o consumidor, o que é?

Seria cômico, não fosse trágico, o tratamento destinado aos consumidores em quase todas as áreas de prestação de serviço. Acumulei, ao longo da vida, inúmeras contrariedades criadas pelo péssimo atendimento recebido. Passei por toda a sorte de absurdos, desde compra de automóvel dito novo e já usado, até sofrimentos frequentes no serviço de TV por assinatura.
Comprei um carro zero quilômetro, usado duas semanas por um diretor da concessionária, um dos sócios da mesma. Em conversas informais no setor de manutenção do local, descobri que isso era habitual. Todas as vezes que o caminhão-cegonha chegava, o tal diretor escolhia um carro entre os melhores, mandava desconectar o cabo do hodômetro e rodava com ele por uns dez, quinze dias. Reconectado o cabo do hodômetro e providenciada uma geral, veículo no salão para ser vendido como novo.
Já assinante de TV fechada, optei por um pacote novo, com a instalação de um equipamento mais sofisticado. A mensalidade aumentou a partir do mês seguinte, único ônus informado. Ano e pouco mais tarde, sem explicação ou aviso anterior, me cobraram o equipamento. Questionei a operadora e fui informado que eu sabia. Pedi a minha assinatura num documento ou uma gravação de contato telefônico. Nada tinham e alegaram que a gravação mantinham em arquivo por apenas três meses. Ou seja, supostamente após noventa dias, jogam fora o comprovante da dívida contraída. Passados treze meses a debitam à revelia, alegando eliminada a única comprovação. Excelente negócio.
O governo criou canais para nos socorrermos desses contos do vigário. Entretanto, nem sempre eficientes como deveriam, levam o consumidor à exaustão no trâmite insano de cada reclamação. Com respostas infundadas e explicações vazias, a empresa alvo da reclamação cumpre um ritual protocolar ante o órgão regulador. Ao que parece, objetivam cansar o reclamante, qual boxeador aceitando apanhar em todos os rounds para ganhar a luta com um golpe certeiro no último assalto.
À justiça poucos recorrem, até denotando alguma evolução, pois por muitas décadas sequer defendemos esses direitos. Resta o problema do tempo, seja para acionar seja para esperar, pelo árduo e longo caminho a percorrer. Pior, nem sempre exitoso, por incrível que isso possa parecer.
Sempre que me obrigo a efetuar um depósito judicial, sofro na fila do banco que monopoliza a operação, em média cinquenta minutos cada vez. Resolvi acionar a referida instituição, partindo do pressuposto da existência de uma lei determinando o prazo máximo para a permanência em filas de banco. Passados muitos meses, tive o dissabor de ver minhas pretensões jogadas por terra. Ficou o dito pelo não dito e o processo arquivado.
Depois de tantos infortúnios, pelo menos tive uma vantagem curiosa, ao ficar mais risonho. Todo dia, ao acordar e lavar o rosto, dou sonoras gargalhadas ao me olhar no espelho para fazer a barba. Sempre me surpreendo com o meu redondo nariz vermelho e minha roupa engraçada, inclusive um hilário chapéu com bolinhas coloridas.
E reflito feliz: ainda bem que esse pessoal todo que me reconhece como consumidor se diverte muito mais do que eu. Senão, qual seria a graça?

domingo, 10 de julho de 2011

Fé cega, faca amolada

Há quem me pergunte, especialmente os mais jovens, por que o meu blog foi denominado facaamoladafecega. Por uma questão de direito à inspiração do blog e de dever com os que me dão a honra da leitura, reproduzo hoje a letra do sucesso do grande Milton Nascimento. Dispensam qualquer outro comentário o título e a letra da música. Para quem não conhece a composição, asseguro que a melodia e a interpretação do Bituca estão rigorosamente no mesmo nível dos versos. Quem quiser conferir, segue um link: http://www.youtube.com/watch?v=lAERY215O6k

Fé cega, faca amolada(Milton Nascimento/Ronaldo Bastos)

Agora não pergunto mais pra onde vai a estrada.
Agora não espero mais aquela madrugada.
Vai ser, vai ser, vai ter de ser, vai ser faca amolada.
O brilho cego de paixão e fé, faca amolada.
Deixar a sua luz brilhar e ser muito tranquilo.
Deixar o seu amor crescer e ser muito tranquilo.
Brilhar, brilhar, acontecer, brilhar faca amolada.
Irmão, irmã, irmã, irmão de fé faca amolada.
Plantar o trigo e refazer o pão de cada dia.
Beber o vinho e renascer na luz de todo dia.
A fé, a fé, paixão e fé, a fé, faca amolada.
O chão, o chão, o sal da terra, o chão, faca amolada.
Deixar a sua luz brilhar no pão de todo dia.
Deixar o seu amor crescer na luz de cada dia.
Vai ser, vai ser, vai ter de ser, vai ser muito tranquilo.
O brilho cego de paixão e fé, faca amolada.

sábado, 9 de julho de 2011

Ninguém se indigna mais

A nossa guerrilha de cada dia permanece em alta. A violência nos agride física e moralmente, algumas vezes disfarçada de achaques, substituída pela alternância dos editoriais. No Rio de Janeiro saem de cena os assaltos e os seqüestros, entram as granadas, as balas perdidas e os bueiros terroristas. Voltar para casa numa comunidade pobre ou caminhar num inocente passeio por uma rua da cidade podem terminar numa tragédia.
Como prevenir esses sinistros, evitando perdas irreparáveis, vidas ceifadas na mais tenra idade, deficiências físicas graves, prejuízos patrimoniais? As autoridades ainda não encontraram um antídoto eficiente, pelo menos as repetições indicam isso. Esperamos que as providências sejam mais rápidas e efetivas do que as tomadas até o momento.
No caso das comunidades, determinadas ocorrências soam injustificáveis. Os fatos em si constrangem pela maneira violenta e descuidada, agravada pelos desdobramentos de cunho investigativo, dentre os quais falhas gravíssimas. Do ponto de vista das famílias, seria impossível conseguir tortura mais massacrante.
Bueiros explodem numa freqüência absurda, noutros se encontra uma quantidade de gás de alto risco, espelhando uma dura realidade para um Rio de Janeiro tão decantado pelo turismo, sede de importantes eventos mundiais. Assemelha-se a cidade a uma charmosa mulher que fica assustadora ao limpar a maquiagem e se desnudar.
Em paralelo, povoam as manchetes os escândalos em todos os âmbitos, federal, estadual, municipal. Lideranças que deveriam ser exemplos de conduta se envolvem em casos nebulosos, no mínimo demonstrando descaso com as mais elementares noções de ética. Atletas e autoridades esportivas não escapam de fortes acusações, velhos e novos personagens se alternam em escaramuças.
O que dizer disso tudo? Que tempos se anunciam para as testemunhas de tantos e repetidos deslizes públicos e privados? Que gerações formamos, que caráter forjamos, que colheita estamos semeando? Esgotamos todas as possibilidades de reversão desse processo? Passamos a nos comportar de forma meramente contemplativa? Sentimo-nos confortáveis com essa realidade? Perdemos a capacidade de nos indignar?

sexta-feira, 8 de julho de 2011

A missão de quem escreve


O universo de quem escreve é complexo como a natureza humana. A percepção do escritor, transposta para o texto como lente fotográfica, registra tanto as paisagens mais sublimes quanto as cenas mais trágicas possíveis de testemunhar.
Nada escapa à narrativa, desde a tonalidade da cor dos olhos até o vestir andrajoso de uma personagem, passando pelos detalhes da mobília do ambiente à aridez do cenário.
O comportamento inusitado e o padrão se misturam recorrentemente, dependendo da visão de quem cria e da linha a ser desenvolvida. Enfim, trata-se de um mosaico de possibilidades, refletindo a convulsiva mente humana no processo de criação e as expectativas mais heterogêneas do leitor.
A inspiração de quem escreve é saber que o conteúdo de sua obra transcenderá as suas abstrações, impregnando o inconsciente coletivo, eternizando seu pensamento e perenizando seus tipos, imaginários ou não.
A missão de quem escreve se mostra singela e única. Cabe-lhe compartilhar o conteúdo com o desconhecido, nas referências mais profundas e pessoais que a verve propicia, semeando o conhecimento e a informação de forma despudorada, democratizando o seu eu. Mesmo as narrativas ficcionistas revelam traços mais íntimos, conceitos arraigados que emergem apenas quando traduzidos impulsivamente no frasear irrequieto do autor.
Esse comportamento permissivo do escritor, desnuda a sua privacidade e admite que o leitor assuma ares de cumplicidade, muitas vezes alterando a lógica do texto pela interpretação pessoal de quem lê.
É, portanto, uma missão prenhe de altruísmo e despojamento, que tem como pré-requisito uma alma nobre e uma visão coletiva especial.
No que se refere à forma, por se revestir da responsabilidade de quem dissemina e da dignidade de quem constrói, exige o inalienável compromisso com a perfeição no trato do idioma e com a estética do redigir. Tal preocupação não deve se sobrepor à mensagem, mas aliar-se a ela, produzindo uma obra que ofereça ao leitor a dualidade da revelação e do conhecimento lingüístico na mesma proporção. Um texto mal redigido se assemelha a uma rara flor num vaso quebrado, a uma pedra preciosa mal polida, a uma beleza que não resplandece.
Pode ser um desabafo, um alento ou uma forma de confessar que viveu, como disse um dos grandes nessa arte. Antes de qualquer coisa, trata-se de uma catarse, uma experiência talvez mediúnica.
Quem sabe por isso se atribua a Deus o primeiro verso ou a primeira linha. O restante se desenvolve.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Imponderável


Semana passada manuseei umas fotos antigas, escolhendo algumas para uma entrevista que o Magia Rubro-Negra, portal onde escrevo, publicou sobre a minha paixão pelo Flamengo. Ao fazer a seleção das fotos, me deparei com os alegres registros de uma festa em que reuni vários apaixonados pelo clube depois de uma grande conquista. Escolhi algumas e enviei para o responsável pela matéria. Por conta da lembrança, também as enviei aos que estiveram no evento e cujo endereço eletrônico localizei.
Numa delas estava um feliz grupo de amigos e familiares. Dentre eles um mais satisfeito, por ser ganhador de uma faixa oficial do título, que sorteei entre os convidados. Domingo, ao ler a entrevista, por não vê-lo há muitos anos e não saber como lhe enviar as fotos, passei alguns momentos me lembrando do seu jeito diferente. Arredio e sempre desconfiado, suponho que ressentido das muitas pancadas que a vida lhe deu.
Eu o conheci há uns 30 anos. A impressão mais forte que guardei dele desde o início foi o inconformismo com a mal sucedida carreira de jogador de futebol, abortada precocemente em razão de uma contusão. Ele foi juvenil de um clube grande carioca, jogando com atletas que ficaram muito conhecidos.
Essa rasteira do destino ele jamais absorveu. Costumava desdenhar do talento de alguns dos mais famosos ex-companheiros, considerando que ele jogava mais do que eles. A firmeza com que ele assegurava isso me passava a certeza da verdade. Depois disso ainda sofreu outros revezes importantes, o que não é problema exclusivo dele nem de ninguém.
Seria tudo pouco significativo se um amigo comum não me comunicasse do falecimento dele hoje, menos de uma semana após ter o sorriso estampado no ciberespaço. Sem muita justificativa, ele se sentiu mal e não resistiu. Embora desde garoto acostumado com a incontornável realidade da morte, ela me assusta com o seu perfil imponderável. Agora é a minha vez de ficar inconformado.
Uma das minhas cenas preferidas no cinema tem como personagem Roy Batty, um andróide criminoso interpretado pelo Rutger Hauer em Blade Runner / O caçador de andróides. Após filosofar sobre nascer sabendo o dia da morte, ele poupa a vida de seu algoz e morre deixando escapar de suas mãos uma pomba branca. Num cenário sombrio e chuvoso, com a música de Vangelis ao fundo, trata-se de um clássico, na minha opinião.
Com bastante freqüência, costumamos ouvir discursos em contraponto à prática. Não fujo à regra e afianço que devemos aproveitar da melhor maneira os preciosos momentos concedidos pelo destino. Ao contrário dos replicantes do Blade Runner, não temos conhecimento de quando será o término de nossa validade. Ainda assim, movidos por motivos menores, preferimos negligenciar uma existência mais agradável.
Vivemos em paz ou descansamos em paz. Nesse caso, ele descansará em paz.

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Encruzilhadas

Somos parecidos na essência, temos a mesma direção, ainda que divergentes nos sentidos. Quantas vezes nos vemos nas encruzilhadas da vida, tão complexas quanto nossas expectativas. O mais modesto trabalhador, saindo de casa quando o sol sequer raiou, supera as suas, certamente. Por mais óbvia a diferença das cruzadas, por exemplo, pelo empresário bem sucedido, ambos se consomem em seus momentos de preocupação.
O homem do povo dribla as dificuldades imitando os ídolos no futebol. Só se distinguem porque o craque da bola recebe num mês o que o outro não acumula numa vida de trabalho. Contorcionista ao entrar no trem, o operário garante espaço para os seus graves problemas cotidianos. Gladiador urbano, acostumou-se ao bafo do leão que mata a cada dia, só fraquejando diante do débito social com a família e frente à permanente falta de dinheiro. Equilibrista sem rede, o salário morre na queda após o eterno duelo com a folha do calendário. Mas dá um jeito de arranjar algum para o donativo de fé ou para beber com os amigos, inclusive o santo. Sonha ser patrão e, sobretudo, adora viver.
O empresário, de parâmetros e status distintos, tem compromissos de toda a ordem. O helicóptero, qual o beija-flor e o artilheiro, pára no ar e finta o trânsito. O espaço aéreo não tem esquinas e vira a arena onde os guerreiros mal se vêem, muito se falam, sempre se enfrentam. Pequenos aparelhos de última geração os conectam com todas as mídias. Na presunção de aumentar o tempo de lazer, a tecnologia escravizou a todos, acirrou as batalhas e desumanizou os contatos. As manobras não dependem mais do dia ou da noite, de local ou de estação. Precisam acontecer continuamente. Na agenda nada mais cabe e o homem de negócios quer mais do que possui, não importa quanto e a que preço. Sonha ser dono do mundo e, convicto, pensa que vive.
São tantas e perigosas as decisões, tortuosos os caminhos, que pouco dormem, porque um não consegue e o outro supõe não poder. Ainda assim conseguem sonhar, mesmo acordados. Enxergam novas alternativas, singelas ou grandiosas, quase imperceptíveis a um e a outro, sob perspectivas bem singulares. Em suma, desejam mais, cada um a seu modo. E, ao desejarem mais, multiplicam as encruzilhadas.

terça-feira, 5 de julho de 2011

Rastros


Tempo,
santo de minhas preces,
terço de contas poucas,
eco de vozes roucas,
mudas num só momento.

Sonho,
tela de muitas cores,
visão do inexplicável,
segredo impenetrável,
tema que não proponho.

Felicidade,
bem-estar do espírito,
sensação interior,
êxtase de luz e calor,
fração de divindade.

Alegria,
sorriso do sentimento,
brilho dos olhos rasos,
intérprete dos acasos,
pão nosso de cada dia.

Tristeza,
prefácio do sofrimento,
surge sem ter convite,
em todo lugar se admite,
do viver irmã siamesa.

Alma,
essência da fragrância,
verbo do coração,
ponto de inflexão,
voz que nos acalma.

Vida,
sopro de ar divino,
pólen de flor selvagem,
oásis de longa viagem,
seiva mal dividida.

Morte,
tristeza e alegria unidas,
felicidade reformulada,
tempo de vida sonhada,
alma de quem tem sorte.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Deus, salve os Américas


Ainda que precisem entender não serem o centro do Universo, hoje é um dia importantíssimo para o pessoal de uma grande nação do hemisfério norte. Momento marcante deles, em que o nacionalismo transpira por todos os poros de lá, em cada estado representado pela estrela da bandeira que ostentam com orgulho e paixão.

Justo e louvável, diria até digno de inveja para nós, que só lembramos disso quando a pátria de chuteiras entra em campo ou quando o hino nacional toca por algum pódio alcançado muito eventualmente. Aí emerge um sentimento patriota, com frequência banhado em lágrimas, um repentino acometimento de brasilidade extremada.

Raro termos essa reação quando lemos os descalabros diários contra o bolso do contribuinte, travestidos de negociações espúrias, muitas vezes promíscuas, entre governantes e empresariado. A indignação do povo passa longe diante das manchetes dos escândalos que custariam a carreira de políticos em outros países. Queremos a Copa e as Olimpíadas, para vestirmos as camisas amarelinhas e desfraldarmos as bandeiras.



Os achaques à cidadania também não encontram repúdio dos movimentos coordenados pelas entidades de classe que tão bem se articulam em prol de interesses setoriais. Quando a causa é isolada há uma coesão enorme, uma participação ativa. Em situações mais abrangentes vemos um salve-se quem puder estabelecido com regras claras.

A minoria, os que estão defesos aos ataques dos homens públicos, ou seja, os moradores de casa própria, os detentores de planos de saúde, os protegidos por segurança privada, se encastelam em suas ilhas de felicidade e evitam se aprofundar nesses temas incovenientes. Vários sabem cantar o hino, preferindo deixar para fazê-lo nos eventos esportivos apenas por precaução.
A maioria, os habitantes de locais sem infraestrutura, muitos em encostas de morros, os frequentadores dos hospitais públicos e os que saem de casa sem saberem se voltam, esses oram a quem têm fé e às vezes lembram das eleições, apenas no auge da crise. Sem se revoltarem nem se unirem, esquecem do hino, que sequer conseguem decorar, imaginando escrito em outro idioma.

E aí, quando chega o dia 7 de setembro, todos aproveitam o feriado, seja regado a uma cachacinha, a uma cervejinha ou a um 12 anos.“Há os que vão pra mata, pra cachoeira ou pro mar, mas eu que sou do samba vou pro terreiro sambar”. Os demais levam mulher e filhos ao desfile das forças armadas, sem compreender exatamente o que fazem lá. E vida que segue.

Deus, salve os Américas. O do José Trajano, o Mineiro e o de Natal.

sábado, 2 de julho de 2011

A metáfora do cachorro e suas pulgas


Devemos acreditar que o Universo seja um gigantesco lustre, com milhões de pequenas lâmpadas, que foi pendurado num teto que se autoconstruiu? Guardadas as proporções da explicação simplista, diante de tal complexidade e magnitude, essa imagem me intrigou a vida inteira.
Desde menino desenvolvi uma aguçada curiosidade em relação ao assunto. Em busca de uma definição mais compreensível para essas dúvidas, procurei uma figura que trouxesse um esclarecimento mais óbvio. Foi então que, não sei exatamente por que razão, me ocorreu a imagem do cachorro e suas pulgas. Poderiam ser as inexploradas profundezas do mar, seus milhares de cardumes e respectivos hospedeiros. Porém, o melhor amigo do homem me inspirou antes de ler Jules Verne.
Vamos supor que um cão de rua tenha uma infestação de pulgas. Hospedagem indesejada, natural e diversificada. Os cientistas já catalogaram mais de duas mil espécies diferentes desse inseto. Partindo da premissa de que uma pulga coloca de vinte a cinquenta ovos por dia, quantas centenas de pulgas carregaria um animal de pequeno porte? Imagine que cada um desses minúsculos seres, entranhados na pelagem canina, representasse um mundo à parte.
Do ponto de vista microscópico, pouco importa quantas dioptrias usemos para ampliação, podemos aventar a hipótese de universos paralelos. Em cada um desses pontículos observaríamos a pluralidade da vida, as inúmeras diferenças, as várias semelhanças.
Abstraindo um pouco mais, quantos cachorros há nas ruas, em quantas ruas, quantas cidades, quantos estados e países? Quantas pulgas e quantos mundos? Essa projeção é infinita. De tal maneira nos apequena, que deixa de ser intrigante para nos afrontar. Dediquei vários momentos a essa viagem sem fim, introspectando as perguntas. É incrível não se saber onde termina.
Olhando para um cenário maior ou menor podemos nos encontrar disfarçados de mitológicos cíclopes ou de poeira invisível. A cada microsegundo as transformações ocorrem em escalas distintas, imperceptíveis ou assustadoras, criando ou destruindo, evoluindo ou degenerando, num pulsar frenético e incontrolável. Podemos estar numa galáxia, num quasar ou numa bactéria, tudo muito relativo e imponderável, bastando alterar o foco.
E só abordamos aqui uma dimensão, a espacial. Poderíamos recordar de Newton e de Einstein, suas elucubrações sobre o tempo, as teorias da simultaneidade de acontecimentos, a percepção sobre o comportamento da matéria, com pitadas de filosofia e de fundamentos da física, quântica ou não.
O que resta, em última análise, é a dualidade que nos permite o poder esmagador sobre pulgas e outros seres, ao mesmo tempo que nos sentimos infinitesimais diante da galáxia. Aquela mesma travestida de lustre num teto rebaixado por alguém, não se sabe quando nem como. Afinal, somos pequenos ou enormes? Depende de quem nos olha.