quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Panis et Circenses

P&C1: Mais uma vez num evento mundial os próceres do futebol se superaram. Não bastassem os descalabros dos orçamentos estratosféricos das obras que nos enfiaram goela abaixo para a realização da Copa no Brasil, as revisões dos projetos, as isenções fiscais, os desmandos, o jogo sujo de sempre, agora veio a tabela. E o Maracanã, mesmo esse arremedo do outrora Maior do Mundo, somente receberá a seleção brasileira se chegarmos à final. Trata-se de uma agressão ao palco mais significativo desse esporte, uma afronta ao povo brasileiro, não a um suposto bairrismo carioca. Os profanadores do templo sagrado do futebol conseguiram a façanha de destruí-lo e humilhá-lo em seguida, com requinte de crueldade. Lançando mão de critérios politiqueiros e rasteiros, ignoraram a possibilidade do Maracanã passar pela Copa sem receber a seleção brasileira uma vez sequer. Dizem ter havido mais de cinqüenta alternativas de tabela e escolheram exatamente a que comete uma falha inédita em outra Copa. O mais importante estádio brasileiro corre o risco de passar a Copa sem receber o Brasil em campo.
P&C2: Nessa aldeia chamada mundo, prenderam o Polegar no Paraguai e a dúvida reside apenas em se saber o local mais adequado para mantê-lo preso. De uma maneira ou de outra, um dos mais procurados criminosos brasileiros, acusado de diversos crimes, será mantido afastado da sociedade. E cadê os outros? Qual o valor do rombo, social ou pecuniário, cometido pelo Polegar? Seria comparável com as cifras gigantescas que tomam rumo ignorado sob chancela oficial? Quantos crimes são cometidos diariamente pelos corredores tortuosos dos governos municipal, estadual e federal? Quantas tramóias, quantos superfaturamentos, quantos escândalos, quantas ONGs, quantos desvios, quantos desastres, quantas mortes, quanta corrupção? E onde estão os culpados, os de ontem, os de hoje, os de amanhã? Onde foi o dinheiro há decadas escamoteado ou não em cuecas, em malas, em contas-fantasmas, aqui e no exterior, por qual ralo escorreu? Muitos ajustes devem estar acontecendo nesse exato momento, em gabinetes, em quartos de hotéis, em qualquer parte, à luz do dia ou na calada da noite. Os protagonistas vestem roupas de grife, não se escondem, não se camuflam na selva, não fogem o tempo todo. Mas prenderam o Polegar, a dúvida ficou só no destino. Que destino?
P&C3: A cada dia um bilhão de pessoas no mundo dorme com fome. Enquanto isso, um terço dos alimentos produzidos na face da Terra é mal aproveitado, desperdiçado, jogado fora. E seres humanos morrem de inanição a cada segundo, recém-nascidos mal têm força para chorar, mães, pais, irmãos disputando comida como uma alcatéia faminta, desnutrida de corpo e de alma. O que fazemos por aqui na verdade? Que tipo de espécie representamos, como definir a humanidade? Quantos se enojam diante das notícias, das imagens cruéis nas mídias cada vez mais instantâneas? Até quando haverá esse descompromisso com uma verdade tão agressora, mesmo às consciências mais insensíveis? Afinal, que objetivo sensato nos move a continuar contemplativamente impassíveis. Há dignidade em fazermos parte de uma encenação sórdida, onde poucos se locupletam, muitos sobrevivem e inúmeros são execrados? Quem somos, de onde viemos, para onde vamos? Há conotações diferentes, mas a pergunta se repetirá sempre, eternamente.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Passageiro

Truque antigo, a natureza faz singelo,
troca o velho pelo novo e mais belo,
dispensando existência, tarde, cedo,
ignora influência, coragem, medo.
Ontem outros, hoje nós, depois vocês,
não há padrões, tampouco há porquês,
vem a mão e nos recolhe bem na hora,
torna inútil a resistência a ir embora.
Vida e morte nascem gêmeas siamesas,
uma certa e outra prenhe de incertezas,
juntas, disfarçadas, enganam a idade,
dissimulam e nos afastam da verdade.
Convidados a jornadas imprevistas,
chegamos e partimos qual turistas,
visitantes por um tempo indesejado,
passageiros de destino inesperado.
Só nos resta o prazer dos instantes,
os lugares, os caminhos, os passantes,
as essências, os sabores, a paisagem,
os registros, as lembranças de viagem.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Eram os deuses astronautas ou seriam os deuses internautas?

Sou de uma geração que na adolescência leu “Eram os deuses astronautas?” e “De volta às estrelas”, ambos de Erik Von Däniken. Diferentemente de “Eu, robô” de Isaac Asimov e de “Admirável mundo novo” de Aldous Huxley, as obras de Däniken fazem questionamentos sem resposta. Sem resposta, aliás, até hoje. Os outros dois autores viram seus conceitos se viabilizarem ao longo das décadas seguintes, quando a ciência transformou em realidade muitas das ideias consideradas apenas fictícias. A inteligência artificial e o bebê de proveta, por exemplo, estão aí para comprovar.
Por outro lado, o sincretismo religioso tenta explicar de forma arraigada muitas dúvidas permanentes, algumas observadas nos livros do suíço de teses revolucionárias. Sempre foram instigantes as pesquisas a respeito de indícios desfigurando a natureza com padrões polêmicos. Desenhos sugerindo sinalizações observadas apenas a quilômetros de altura ou a indicar figuras titânicas assumindo postura divina. Com a evolução do pensamento científico, algumas vezes verificamos assertivas consubstanciando o temário do escritor. Pelo ineditismo de suas análises, ele vendeu quase uma centena de milhões de livros. Se não se incluiu na classe dos malditos dessa literatura específica, certamente confrontou interesses eclesiásticos.
As pulgas que o Däniken colocou atrás de minhas orelhas se infiltraram em minha corrente sanguínea e coçam no meu cérebro até os dias de hoje. Faço reflexões desde então, exercitando o saudável direito de duvidar de dogmas por ter inoculado o vírus da indagação. A mania infantil de querer saber dos porquês sem resposta nos revela surpresas quando menos esperamos. Basta não se acomodar com esclarecimentos inócuos ou aceitar afirmativas ditatoriais do tipo “é assim e estamos conversados”. Diferentemente dos anos sessenta e setenta, hoje olho para um presente cujas práticas transcendem a cibernética intangível da minha adolescência. E ainda permaneço desconhecendo quem somos, de onde viemos e para onde vamos.
Chama a atenção o fato de atualmente convivermos com jogos virtuais superados dia a dia, alguns manipulando pessoas, famílias, ruas, bairros, cidades, enfim, a vida. Sugerem a existência de um poder controlador intercedendo nos destinos de personagens que se confundem conosco. Ao ampliarmos a tela do computador para a humanidade, descobrimos mais pixels e melhor definição, olhamos para nós mesmos. Alternamos funções de criadores e criaturas. Seriam os deuses internautas?

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Trilha

Após descer do carrinho da montanha russa, vivo a estranha sensação de que a vida continua. Estranho porque os sobressaltos e a adrenalina nos levam a acreditar inexistir outra coisa além daquilo. Gravitamos em torno de fatos marcantes, perdas inestimáveis, tristezas enormes e inesperadamente chega um alento, uma alegria inusitada a nos resgatar para a nossa efêmera existência. Como explicar a velocidade dos acontecimentos? Num dia o coração apertado pela saudade, noutro acelerado por uma alegria isolada. Ela vem disfarçada por lembranças trazendo a saudade de volta, mas pelo menos nos permite esboçar um sorriso no rosto.
Somos movidos pelas circunstâncias, vivemos num moto contínuo, seguimos uma vereda de final igual para todos. Enquanto ele não chega superamos obstáculos, sensibilizamo-nos com os passantes, com os terminais, mas caminhamos em frente. Por que? Porque estamos determinados a prosseguir não importa como. Dois passos podem significar grandes mudanças, alterações de humor, alternativas novas, visões desconhecidas. As parcerias do caminho se renovam, não há tempo para lamentos. Tudo se move com rapidez e indiferença, a prioridade está no ir adiante, sempre em direção ao fim.
A maneira como fazemos isso nos qualifica diante dessa caminhada. Valorizar os circunstantes e a nós mesmos tem uma valia especial, pois nos projeta a uma perspectiva diferente. O cenário muda muito pouco, os nomes se revezam, entretanto as histórias são únicas e, às vezes, pouco as percebemos exatamente. Seus detalhes e expressões oferecem experiências ricas, suas particularidades povoam as mais instigantes metáforas do andarilho que representamos, falta-nos querer enxergá-las na plenitude. As jornadas mal terminam e começam outras, nossa missão é manter o ritmo, assim como apenas cumpríssemos uma rotina.
Qual o real sentido de mantermos passadas tão obstinadas se não aproveitamos a ambiência, se sublimamos tão rápido as rupturas, se desperdiçamos com vulgaridade as essências? Sequer exercitamos o amadurecimento em forma de dor, por uma suposta e absoluta falta de tempo. E o que seria esse lapso mensurável? Considerado pouco para a maioria, parece demasiado ante o desestímulo e o cansaço de muitos. A imprescindível renovação tem o efeito de um portal cujo posicionamento muda de acordo com as contingências. Quase um rito extemporâneo de passagem, as idas e vindas viraram um lugar comum aos olhos de quem testemunha.
Enfim, há uma trilha percorrida nem se imagina desde quando, miscelânea de pegadas inexatas, rastros desaparecendo repentinamente, pistas surgidas do nada. Só a observação mais atenta viabiliza a melhor opção de caminho. Não basta somente andar a esmo e ignorar os sinais, percepção inadequada dessa viagem. Estamos todos no mesmo passo, inconscientemente representando papéis diferentes. Desconhecemos de onde viemos e para onde vamos. Acordamos para recomeçar e dormimos para descansar. E caminhamos, com ou sem razão.

sábado, 8 de outubro de 2011

Finitude

Fiquei quase uma semana sem escrever, o que para mim é impensável em circunstâncias normais. Normalidade zero numa semana para se esquecer, daquelas que não fariam a menor falta se jamais tivessem existido. Ela culminou com a perda de um querido amigo, uma pessoa incontestavelmente do bem. Bom filho, bom marido, bom pai, homem educado e gentil, profissional exemplar, um cidadão muito diferenciado. Nenhum desses atributos conseguiu livrá-lo de um mal avassalador, de uma doença agressiva que, em aproximadamente doze meses, lhe ceifou a vida aos cinquenta e dois anos.
A cara da morte é conhecida desde o dia em que nascemos. Ela desrespeita a lógica, estando presente o tempo todo. Se esgueira pelos espaços concedidos ou não, por locais e situações inimagináveis, em condições imprevistas, momentos inesperados, sorrateira e dissimulada. Seu bote é certeiro e infalível, sabidamente eficaz e com data marcada, só desconhecemos a agenda. Fazer parte de uma família feliz não é antídoto para a sua peçonha, pouco importa a ela que o alvo seja amado e indispensável. Tomada de sanha terrível, se apresenta inexorável e fria, impassível ao anunciar a decisão irreversível.
A fé que professemos não nos salva, a descrença também não. Talvez conforte ou ignore, às vezes amenize, dependendo do caso, porém não nos escuda do implacável ajuste de contas. Temos tempo finito e imprevisto, incondicional acessório de todas as caminhadas. Solitária ou solidariamente seremos colhidos pela mão do destino, tão logo chegue a hora. Não pedimos para vir nem para ir, apenas acontece. Podemos conspirar a favor, sem dúvida, há quem proceda assim por opção. Mas em geral amamos a vida e não gostaríamos de conviver com essa dúvida permanente. Qual seria a melhor maneira de enfrentar a maior de todas as certezas?
A incomensurável complexidade desse tema é proporcional ao valor da patente de uma fórmula com a solução do problema. Entretanto, nos resta uma alternativa mais simples, de praticidade garantida e comprovada, embora estranhamente pouco utilizada. Diante da imprevisibilidade da morte devemos viver com intensidade. Precisamos aproveitar cada momento com a sofreguidão dos sedentos, saborear cada minuto com a fome dos insaciáveis, compreender que cada segundo pode ser o último. Óbvio que teremos sempre compromissos e deveres, afinal para a sobrevivência há um preço cobrado nas caixas registradoras. Contudo, jamais haverá equivalência ao valor inestimável da vida, ao amor dos que nos cercam, à alegria da convivência, à felicidade do desfrutar de tudo na companhia de quem nos quer bem.
Enfim, lembramos disso ao sofrermos pelo que perdemos e nos sentirmos lesados. Egoístas, a dor de quem fica e a visão do fim. Lamentamos porque permanecemos, porque não aceitamos o desenlace, porque o corte nos machuca. E depois, como continuamos, nós e quem se foi? A resposta possível se restringe a esse plano conhecido e não me parece inspirar mudanças. As exigências do cotidiano se incumbem de nos atirar à mesmice em breve e logo nos deparamos desprezando os valores mais importantes de nossa existência. Até quando? Até o fim.
P.S.: Não acredito em coincidências. Meu texto anterior foi intitulado "Chorar faz bem". O texto de hoje é dedicado ao meu querido amigo Edu, cuja passagem por aqui iluminou as pessoas mais próximas e as mais distantes. Meu amigo, que o seu caminho de luz seja eterno.

domingo, 2 de outubro de 2011

Chorar faz bem

Ainda soam os últimos acordes na Cidade do Rock, os derradeiros suspiros de duas semanas diferentes no cenário mundial. Um evento de congraçamento e de muita paz, de alegria transbordante, de comunhão do sentimento de amor à música, menos importando o estilo e os apelos mercadológicos. Vimos jovens e velhos unidos na mesma sintonia, uns levando outros e outros levando uns. Uma festa inesquecível para quem esteve na plateia e no palco. Momentos sublimes de troca de energia entre os artistas e a multidão. A esmagadora maioria simplesmente interessada em absorver aquelas doses fartas de harmonia e de felicidade.
Vi muita gente chorando de emoção, astros e público, não tendo vergonha de expressar a emoção de viver uma situação singular e mágica. A vida nos proporciona isso, acontecimentos únicos e marcantes pela companhia, pelo visual, pelo som. Passa o tempo e lá estão, num canto especialmente reservado em nossa memória, as luzes, a música, as lembranças mais belas de cenas incomparáveis. Farão parte do imaginário eterno das horas intermináveis, superando em intensidade dias, meses, anos vividos. Falaremos delas para filhos, netos e bisnetos, para amigos e para nós mesmos, sempre que vierem à tona. Soberanas do coração, redesenham a caricatura do bem viver, espelhando a verdade do que somos, nos apresentando como gostaríamos de ser todo o tempo.
Sou daqueles emotivos de plantão, não me envergonho das lágrimas vertidas. Pouco importa se pela arte me contagiando o espírito, embalando sonhos existenciais, ou se pela constatação de me defrontar com aquilo para o qual não temos solução. Chorar não nos diminui nem nos fragiliza. Ao contrário, purifica, desabafa, desafoga, abre as comportas da represa de reações mais espontâneas. Quando nos vemos impedidos de exteriorizar sentimentos, eles se alojam num compartimento próprio. Os mecanismos que definem se o último a entrar será o primeiro a sair se misturam com as cores da paleta do quadro nosso de cada dia. De repente, no limiar do exercício da natureza, o rio corre para o mar. Enxaguamos as margens dos nossos limites, arrancando raízes do preconceito e espalhando o húmus da sensibilidade pelos demais poros.
Eventualmente pegos de surpresa, a singeleza da lágrima percorre caminhos inexplorados e inusitados. Rega as sementes de novos conceitos e a prática do sensível, respeitando o terreno arado pela virtude. O equilíbrio entre a razão e a emoção constitui o ideal entre o óleo e a água dos nossos potes de vida. Mas lidar com a emoção aflorada nos aproxima mais da humanidade, do calor das experiências de sabor inolvidável e, em última análise, da motivação de viver. Portanto, chore quando sentir vontade, exercendo na plenitude o direito de ser humano.