quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Rock in dreams

Eu queria um festival de Rock, assim mesmo, com letra maiúscula de John Lennon, George Harrison, Keith Moon, John Entwistle, Jimi Hendrix, Janis Joplin, Fred Mercury, Cazuza, Raul Seixas, Renato Russo. Sem saudosismo, acompanho a evolução da música, procuro me manter atualizado, mas me parece impossível deixar de venerar a verdadeira essência desse estilo. Sou capaz de assistir uma noite inteira, hoje instalado no meu sofá, acompanhado pela minha mulher e por um bom vinho. De gosto heterogêneo, amante do bom som independentemente do ritmo, aprecio o Red Hot e o Guns tanto quanto o Coldplay. Mas me desculpo pela indisfarçável satisfação ao escutar Titãs, Paralamas, Sir Elton, Stevie Wonder, Frejat, Capital e Legião.
Um espetáculo emocionante ver o Capital Inicial regendo um coral de milhares de pessoas depois de décadas de estrada. A maioria esmagadora daqueles jovens sequer havia nascido quando o Dinho entoava os maiores sucessos da banda, em alguns acompanhado à época pelo Kiko Zambianchi. Especial ver aquela multidão cantar “Meu caminho é cada manhã/Não procure saber onde vou/ Meu destino não é de ninguém/ Eu não deixo meus passos no chão”. O vocalista quase cinqüentão não escondia seu êxtase diante de uma plateia tão participativa, embora aguardassem pela atração principal. A boa música não tem idade. A química entre o povo e o artista traz a mais contundente e definitiva comprovação da eternidade harmônica de versos e melodia. A vida é musical, não importa.
Claro que há distorções incontroláveis. Sir Elton deixou de fazer um bis e nos brindar com “Your song” e “Skyline pigeon” porque, depois do penúltimo acorde e das luzes apagadas, a multidão pedia Rihanna, Rihanna, Rihanna. Mr Reginald se desestimulou e não voltou. Uma pena a sobra de ansiedade e a falta de sensibilidade do público. Essas coisas acontecem na reunião de grandes multidões, risco assumido na aglomeração de ideias diferentes e espíritos rebeldes. Sem problema, foram vários sucessos do Rockaday Johnnie, suficientes para agradar a todos. O castigo no público foi a espera de uma hora e meia pela atração seguinte. Atração?
O tempo vai passando nem rápido nem devagar, apenas com a velocidade relativa das perdas inestimáveis. Meu grande amigo Renato, por exemplo, também apaixonado pelo rock & roll, está assistindo tudo de outro plano. Enquanto isso seguimos por aqui testemunhando os acordes recentes e antigos, lacrimejando com as lembranças irresistíveis de eventos grandiosos ou não, quando o coração pulsou mais forte e a adrenalina fervilhou o sangue na batida da batera e no swing do baixo. Essa emoção indescritível nos faz sentir mais vivos e felizes. Esse legado é tatuado na alma pelo solo das guitarras, pelos arranjos nos teclados e pelo timbre dos metais. As vozes declamam poemas musicados, mensagens perenes de um mundo em conflito ou em paz, sempre deixando uma indelével marca. Os sinais dos novos e dos velhos, sem antagonismo, em equilíbrio, escritos na mesma pauta, cantados no mesmo tom, ecoados na mesma rima. Tudo harmonicamente.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Cosme, irmão de Damião

Antes de tudo, ratifico que o blog é laico, respeitando todas as manifestações de fé. Portanto, mais do que uma homenagem aos santos gêmeos Cosme e Damião em seu dia, e inspirado nos médicos árabes Acta e Passio, seus nomes verdadeiros, persigo a cura do mal comum e sou forçado a descrer das coincidências. Não tenho o hábito de assistir programas apelativos, daqueles que nos apresentam situações pessoais desesperadoras. Deploro o sensacionalismo barato que menos promove a mudança do estado de coisas e se vale do caos para aumentar a audiência. Entretanto, outro dia fui pego de surpresa ao desativar o modo de gravação na TV. A cena do momento era de um quadro conhecido, cujo objetivo é a reforma de carros muito velhos, transformando-os em veículos novos e muito bem equipados. A ideia é criativa, embora encerre uma dose significativa de exploração da miséria alheia. Afora os aspectos demagógicos e até uma futura intenção política do apresentador, a melhor experiência foi testemunhar o humor do personagem central da situação.
O ponto focal do quadro era um típico cidadão de classe pobre, eletricista com remuneração em torno de R$ 1.000,00/mês, aparentando uns trinta e poucos anos, responsável por uma família de sete pessoas. Ele, a mulher, três adolescentes do primeiro casamento dela e duas crianças pequenas da nova união. Sete moradores de um casebre em Osasco, com dois quartos, cozinha e um banheiro sem porta. Ela em tratamento de câncer no INCA/SP, parecendo um pouco mais velha que o companheiro, em razão da doença ou pela diferença etária mesmo. Enfim, o contexto mostrava uma realidade bastante dura, em especial diante da gravidade do problema de saúde da esposa.
A história do Cosme, assim denominado por ter um irmão gêmeo, o Damião, começa no interior da Bahia, num colchão cheio de percevejos que o picavam à noite, perturbando seu sono de criança. Lá não dispunha de água encanada, de esgoto ou de comida suficiente. Melhora um pouco ao chegar a São Paulo, trazido pela mãe que passa a sustentá-los como diarista. Complica com a nova união da mãe, pela opção de devolver os filhos à cidade de origem para ficarem com o pai. Renova a esperança no retorno à capital paulista e culmina com uma promessa que Cosme fez a si mesmo. Ele jura voltar um dia à terra natal em carro próprio e desmentindo os que afiançaram que os dois irmãos virariam criminosos na cidade grande. Sua alegria aumenta quando ratifica a honestidade que norteia seus atos, exemplo que procura passar aos filhos.
O que mais surpreende nessa epopéia moderna é o inabalável sorriso expresso por Cosme o tempo todo. Inobstante a eventualidade de uma e outra lágrima ao longo do relato, ele mantém um riso largo e otimista, falando da vida com a certeza de que as coisas vão melhorar. Reafirma a cada palavra o compromisso com os cinco filhos, assegurando que todos estudarão e terão um futuro melhor. Sua determinação heróica se materializa em recibos de matrícula dos mais velhos em cursos técnicos, prova cabal que ele faz questão de mostrar. Emociona observar uma pessoa com tamanha dificuldade se esforçar diariamente para vencer duríssimos desafios sem se desviar da retidão, da ética e da moral. Não pela essência em si, pois tais valores constituem dever de cidadania. O que sensibiliza é a constatação desse perfil do povo num país onde grassa a corrupção em todos os escalões governamentais, conforme enxergamos nos escândalos nossos de cada dia.
Na semana antes do dia de Cosme e Damião esse caso fica mais emblemático, o acaso não existe. Fiquei imensamente feliz de ver a família do sempre risonho Cosme de carro novo e melhor alojada, após a recuperação do velho automóvel e da reforma da casa em ruínas. Reabasteceu meu espírito cidadão e reenergizou minhas baterias. Nossos lamentos parecem injustificáveis diante da batalha diuturna de uma típica família pobre, sobrecarregada pela injustiça social e por uma grave enfermidade. Somos privilegiados, diria que escolhidos, parcela infinitesimal de protegidos pela sorte que ainda se julga no direito de reclamar do destino. Quanto à corja de desonestos que se beneficia das agruras de Cosme, Damião e de outros milhões de injustiçados, um dia isso vai mudar, de um jeito ou de outro. A desigualdade social sempre foi gêmea da revolta. A história prova isso.

domingo, 25 de setembro de 2011

Meu amigo barbudo

Além de uma homenagem ao meu querido e saudoso Scottie, que estendo ao Popó, à Princesa e a todos os pequenos companheiros que me brindaram com sua inestimável amizade em minha caminhada, o blog de hoje é dedicado a todos que amam os animais, em especial aos queridos amigos Leomagamon e Fabiana, pelo triste momento que passaram ontem. Os amigos de pelo ou de pena fazem parte indissociável de nossas vidas para sempre, não importando se vivam menos do que gostaríamos. São dádivas recebidas do Grande Arquiteto do Universo, presentes que abraçamos e cuidamos com o mais sublime dos carinhos. Um dia nos reencontraremos com todos eles. Eles sabem disso.

Meu amigo barbudo, que saudade de sua alegria,
me consola sua liberdade nessa enorme pradaria.
Seu carinho e amizade me fazem falta demais,
Passa o tempo, ano a ano, não lhe esqueço jamais.
Em quase todas as coisas que eu costumo fazer,
seu nome é a chave da vida que continuo a viver.
Em cada canto da casa sua ausência é tão sentida,
da poltrona no meu quarto ao cantinho da comida.
Vou seguindo o meu caminho até onde ele for,
recordando a sua imagem, enganando a minha dor.
Um dia nos reveremos, além dos sonhos de agora,
para esquecer a tristeza, também lamentar a demora.
Se não secaram as lágrimas da falta que você faz,
a certeza do reencontro me dá um pouco de paz.
Até lá, querido amigo, me resta fazer a homenagem,
pena existir quem me diga que isso tudo é bobagem.
O seu olhar tão sincero, que expressava sem falar,
é o registro que eu quero eternamente recordar.
Nada mais acrescenta, nem nada mais é necessário,
para mim hoje sempre será o seu dia de aniversário.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Coisas pequenas preciosas

“Coisas pequenas preciosas (Precious little things)”, belíssima canção interpretada pelas inesquecíveis “The Supremes”, lideradas pela magnífica Diana Ross, dizia em seus primeiros versos: "Uma palavra de conforto quando me sinto mal. Um telhado sobre minha cabeça quando não tenho para onde ir. Um toque suave quando o mundo é duro e os sonhos não se realizam". A poesia tem o condão de fazer a melhor síntese do que sentimos, transformando palavras soltas em expressões ditando verdades absolutas e eternas. Essas coisas pequenas preciosas nos assediam todo o tempo, acenando com sofreguidão na esperança de atrair o nosso olhar distraído com outras supostamente mais importantes. Nem sempre as enxergamos.
Inspirando e expirando automaticamente, quase nem tenho tempo de me lembrar do cheiro do couro das pastas novas do primário e do ginásio, do perfume da loção pós-barba usada por meu pai, do aroma exalado pela dama-da-noite em meu jardim. Carona do ar vital, quanta alegria nas diferentes e simples fragrâncias. Mera inspiração para sobrevivência, inspiração de vida, inspiração divina. Cheiros impregnando a minha memória enquanto eu viver, rastros da minha história. Nada mais que o sentido do olfato ou fatos sentidos e mais nada?
Observando fotos antigas reconheço os sonhos povoando os olhos brilhantes de um jovem que já fui. Esse olhar míope ainda hoje me acompanha, nos mesmos olhos que o daltonismo enganou vezes a fio, sem saber exatamente como. As cores são de cada um, a beleza das paisagens também. O rubor da amada, o sorriso dos filhos, as flores, o céu, o mar, as estrelas de um e de outro, tudo gratuitamente desfilando para roubarmos de cada cena a eternidade do registro jamais repetido. Ninguém pode definir nossa visão única e intransferível, soberana das imagens projetadas com exclusividade.
Ouvimos os sons da natureza ao acordarmos, ao canto dos bem-te-vis, sabiás e canários; aos gritos das maritacas; ao latido dos cães; ao uivo do vento; ao farfalhar das folhas das árvores, na chuva que cai; na algazarra das crianças; do primeiro ao último bom dia. Escutamos a água correndo na pia e no chuveiro; o assobio da chaleira; o café escoando; o corte do pão; o folhear do jornal; a abertura do computador; o telefone, o rádio, a música, as conversas; os pratos, talheres e copos; mais conversas, telefone, rádio e música; mais pratos, talheres e copos; reflexões sobre o dia; TV; os murmúrios do aconchego; outros sons da natureza ao dormirmos, no vôo dos morcegos; no pio das corujas; até o silêncio da madrugada pode nos fazer bem.
Falamos conosco e com o multiverso, pois está provado existir mais do que um. Há uma interação permanente pelo verbo, com a força de sua expressão impactando o inconsciente coletivo. As palavras escoam rapidamente pelas mais diversas mídias, estamos em todas as partes do mundo, a cada instante num idioma novo, numa multiconferência de Babel. Mosqueteiros cibernéticos, um por milhões, milhões por um. Desejamos felicidade, paz e saúde. Declaramos amor e revelamos saudades. Sussurramos e gritamos a plenos pulmões. Declamamos, cantamos e oramos. Verbalizamos ideias, desejos e sentimentos.
Degustamos porções generosas ou modestas; saboreamos o trivial e as iguarias; provamos o doce e o salgado, o azedo e o amargo; comemos do pão e da carne, do vegetal e do animal; bebemos do vinho e da água; escolhemos pelo gosto e pelas circunstâncias; sorvemos com ansiedade e parcimônia; experimentamos do gelado e do quente; repetimos e saciamo-nos, uns sim outros não.
Tocamos na pele de quem amamos, acariciamos, afagamos, abraçamos. Descobrimos objetos sem vê-los, tateando nas gavetas sem auxílio da luz. Percebemos as imperfeições num mero alisar de superfícies. Pulverizamos os pós, escorremos a areia, misturamos texturas, espalhamos o óleo. Digitamos teclas, dedilhamos cordas, manuseamos a seda, o algodão e o brim. Sentimos o frio e o calor.
Essas coisas pequenas ficam mais preciosas quando privamo-nos delas. Dissimulados e se esgueirando entre umas e outras estão os problemas, apenas salvaguardando nosso direito de viver. Cada pequeno detalhe se transforma num rito de passagem para a felicidade. Feliz daquele que sabe aproveitar as coisas pequenas preciosas da vida, expandindo seus limites além de cinco sentidos. Na realidade, embora aparentemente pequenas, elas fazem tudo ter mais sentido.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Ni Hao!

Depois de alguns anos, voltei a Rio das Ostras nesse fim de semana, revendo pessoas queridas num encontro bastante informal. Fiquei especialmente satisfeito com a alegria de quem promoveu a reunião, um dileto amigo, um irmão por assim dizer. Sempre tive muita facilidade de fazer amizades, agregando muitas ao longo da vida. Esse é um irmão que escolhi, personagem de muitas histórias em minha caminhada, sempre ao meu lado, mesmo que mentalmente, nos bons e maus instantes.
Conheci a figura na PUC/RJ, onde estudamos engenharia juntos. Muito reservado, poucas vezes ouvi a voz dele nas aulas do curso básico. Um dia, no estacionamento à direita do portão de entrada, encontrei o sujeito com o carro enguiçado. Ofereci ajuda e ele aceitou com certa resistência, meio desconfiado. Reboquei o carro dele com o meu, amarrando uma corda em ambos os pára-choques e resolvemos o problema. Depois disso, passamos a nos falar com mais frequência e engrenamos um sistema de transporte solidário. Uma semana com o carro dele e outra com o meu. Isso nos aproximou e transformou aquele fato isolado numa fraterna relação que já fez trinta e cinco anos.
Uma sólida amizade que resistiu ao tempo e às intempéries do destino, com afastamentos compulsórios como o que hoje vivemos. Meu amigo trabalha numa multinacional e mora há quase quatro anos em Shenyang, nordeste da China, onde enfrenta os obstáculos de uma cultura absolutamente distinta da nossa, tanto quanto temperaturas que chegam a trinta graus negativos. Com certeza, esses quatro anos corresponderam a uns vinte anos de vida normal para ele, sobretudo pelo distanciamento do país, da família e dos amigos, entre os quais me incluo. Por outro lado fizeram com que o meu irmão postiço valorizasse pequenos prazeres de maneira mais intensa, numa degustação aprimorada das pequenas porções que se agigantam ao faltarem.
A visão de um brasileiro que mora no exterior é sempre diferente da nossa, que nos habituamos a olhar para o umbigo e ignorar muita coisa que vale muito no dia a dia. Sublimamos pontos negativos gravíssimos e inaceitáveis, ao mesmo tempo em que desperdiçamos momentos saborosos que se repetem às vezes apenas com a teimosia da natureza. O sol, o céu azul, o mar, o verde vicejante por todo o lado, se incorporaram de tal forma ao nosso cotidiano que simplesmente não vemos mais a real extensão da sua beleza. Estar a milhares de quilômetros de sua terra e de seu povo, olhar pela janela e não enxergar o outro lado da rua em razão da poluição, não poder abri-la em virtude do frio insuportável que congela em segundos uma lata de cerveja, isso nos obriga a refletir.
Por todos esses motivos e muitos outros, valeu demais aquele churrasco em Rio das Ostras, ao som de tantãs, de um violão, de uma cuíca e de alguns chocalhos. Apesar de hora só para começar, festejo extinto com o término da última brasa e do último som, aquelas pessoas não tinham a menor noção da importância do que acontecia. Um dia simples, porém inesquecível, foi a moldura que registrou a felicidade no largo sorriso de um Marco Paulo diferente do seu homônimo mercador de Veneza. Ambos atravessaram milhas e milhas náuticas no encalço de quimeras desconhecidas, retornaram à origem e voltaram a se arriscar em terras estranhas para superar desafios enormes e quebrar paradigmas. Entretanto, o Marco Paulo de hoje sabe que tem muito mais gente desejando o seu retorno do que os que esperavam pela volta do seu xará de tantos séculos passados. O outro foi interlocutor de Kublai Khan e deixou um legado histórico tal que virou estátua em cidades chinesas. O nosso desbravador contemporâneo deixará em solo asiático uma fábrica de proporções gigantescas, acelerando ainda mais o desenvolvimento assustador daquele país e de seus quase um bilhão e meio de habitantes. Isso significa arrebanhar um oceano de anônimos amigos, tantos que entre eles me considero uma gotícula.
Ni Hao, Marco!

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Quebra-cabeça

Somos parte de um incomensurável quebra-cabeça, daqueles que demoramos muito para entender e completar. Metáfora interessante. Muitas peças se mostram semelhantes, mas cada uma tem um encaixe diferente e específico, desempenhando papel único no resultado. Há diferenças sutis que só observamos com muita atenção, porém distinguem as unidades antes que elas se incorporem ao conjunto. Em meio à aglomeração desorganizada das partes, misturadas e se confundindo entre elas, impossível enxergar a concepção do modelo.
Muito mais do que isso, o quadro resultante da homogênea união dos fragmentos só se descortina com precisão absoluta após a colocação do derradeiro item. Contemplamos o desfecho somente após a combinação de todos os pedaços. Assim é a vida. Temos que aguardar pela conclusão do plano arquitetado, acompanhando com a devida atenção cada etapa que se revela, procurando entender onde e como encaixar o segmento posterior. A definição plena do que está planejado para nós se traduz na composição passo a passo. À medida que os contornos vão formando as imagens com nitidez, o esclarecimento fica mais fácil.
Assim, na conhecida reflexão dos mundos paralelos, fazemos parte do quadro maior, somando na coletividade dos incontáveis pequenos itens. Vamos nos ajustando aos demais e configurando a tela. Entretanto, cada um isoladamente possui vida própria, constituindo um quadro particular. Esse é fragmentado em inúmeras cenas que se aglutinam para consolidar a existência de todos nós. Num ou noutro exemplo, a montagem do quebra-cabeça restringe a identificação às figuras definidas. Precisamos concluir para interpretar corretamente o que pretendem indicar.
Dia a dia nos detemos na lúdica movimentação de seres e de objetos, componentes performáticos da suposta brincadeira de viver. Questionamos quando não encontramos razão aparente para a resolução dos encaixes. Insistimos até concluirmos que determinadas peças não podem ser utilizadas em determinados momentos, decepcionamo-nos com a ilustração parcial. E em seguida reavaliamos conceitos, percebemos novas alternativas, aceitamos as instruções do manual do destino, as respostas da intuição na escolha. Sentimo-nos realizados no preenchimento das lacunas pendentes, expressando num esgar de satisfação represada o sucesso da temperança contemplativa. A visão ampliada, sob diversos ângulos, favorece a opção mais adequada. No labirinto de tantos caminhos, aprendemos a analisar a mesma situação muitas vezes, até descobrirmos a saída.
A caixa de nossos milhares de peças não tem a gravura que orienta o passatempo, diferença fundamental da realidade para o entretenimento. A paisagem pré-concebida simplifica o processo e manualiza o raciocínio. A felicidade nos espreita em cada gesto, torcendo que acreditemos no porvir, porque o incompleto ainda não chegou ao fim. Juntar os pedaços com alegria, aprendendo com erros e aguardando pelo cenário perfeito, eis o mistério do quebra-cabeça complexo da vida.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Amamos a tragédia

Confesso me esforçar para escrever sobre assuntos que não sobrecarreguem o nosso já saturado cotidiano. Sou daqueles que procura evitar os noticiários, tamanha a quantidade de catástrofes sociais e da natureza que nos invadem pelas telas de TV, computadores e similares. Entretanto, nem sempre consigo evitar. Vira e mexe um tema pesado, desagradável e incômodo invade as minhas reflexões por imposição da mídia.
Dessa vez foi a enxurrada de especiais sobre os atentados de 11/09/2001. Desde a semana passada vemos inúmeros programas especialmente dedicados àqueles momentos terríveis, repassando a tragédia e a agonia que a sucedeu. Em geral se valendo de depoimentos dos sobreviventes relatando, após dez anos, as suas versões de um dia triste na história da humanidade. Ou dos parentes de vítimas transformadas em heróis por salvarem vidas em meio àquele terror.
Do ponto de vista jornalístico, penso remoerem um tema desgastado e explorado de maneira exaustiva, por mais que o registro ajude a reforçar o repúdio a ações como aquela. A simples revisão das cenas hediondas e chocantes nos aflige tanto que me parece não justificar a intenção. O mundo jamais esquecerá daquilo, não importa se nem tocarem no assunto. Nesse aspecto foi alcançado o intuito de quem cometeu aquele ato abominável.
E é exatamente sobre a exploração sensacionalista da imprensa que me detenho hoje nesse texto. Há tempos ouço dizer que vira notícia um homem morder um cachorro, pois o contrário seria bastante natural. Contudo, quão maior for o estrago num ataque canino maiores as possibilidades de ampla divulgação. Em caso de morte, certeza absoluta. O que leva os seres humanos a se interessarem por esse cunho catastrófico da vida?
Numa via de grande movimento, não raro nos deparamos com enormes congestionamentos que se explicam ao ultrapassarmos um acidente grave. Muito mais do que a obstrução das pistas, a resposta pelo gargalo está na curiosidade dos demais motoristas pelos detalhes mórbidos do ocorrido. Cada um diminui a velocidade de seu veículo apenas para melhor observar a cena e verificar os despojos. Como justificar esse comportamento?
Encontramos outro exemplo no filão do cinema-tragédia, nas superproduções milionárias abordando temas em que os desastres espetaculares lotam as bilheterias em todos os continentes. Naufrágios, desastres aéreos, tubarões assassinos, incêndios colossais, terremotos, ciclones, sinistros das mais variadas espécies garantem o retorno do investimento na produção. Com as Torres Gêmeas também foi assim.
Qual o cachorro que corre atrás do rabo, a conclusão infeliz a que chegamos é que o 11/09/2001 aconteceu por esse motivo. Obviamente, afora as questões políticas e filosóficas que cercam o assunto, para as quais necessitaríamos de outro texto. No ideário terrorista, aquele assassinato em massa só se concebeu pela sequiosa capacidade da natureza humana contemplar a tragédia. Chego a imaginar a impossibilidade de uma vida tranqüila num mundo ideal, cuja rotina impassível atormentaria a população ansiosa por uma desgraça de grandes proporções. Será?

domingo, 11 de setembro de 2011

Ecos de felicidade

Estou aqui curtindo os ecos do meu aniversário ontem, escutando um velho LP, “O sonho” do Egberto Gismonti, presente do meu irmão André. Ainda saboreando a querida confraternização junto à família, registro repetido em qualquer circunstância, me divirto com as imagens que permanecem nítidas em minha mente. Costume cuja lembrança trago desde a minha mais tenra infância, habituamo-nos a comemorar as datas marcantes, festejando com intensidade, aproveitando esse tempo tão escasso que dispomos por aqui. Olhando ao meu redor, vi mãe, tias e tios septuagenários, alegremente embalados pelas recordações felizes de momentos vividos em conjunto. O Grande Arquiteto do Universo me concedeu a dádiva de receber inúmeros contatos de prezados amigos e de reunir em minha homenagem outros tão amados, transformando em especialíssimo um dia comum qual outro dos trezentos e sessenta e quatro restantes do ano que iniciei ontem. As inconfundíveis gargalhadas da minha mãe traduzem a atmosfera festiva e a informalidade pairando no ar. A cumplicidade no olhar amoroso da minha querida mulher, o carinho dos meus filhos, a fraternidade extremada do meu irmão, o aconchego dos mais velhos, a atenção de todos, enfim. Até meu grande amigo Marco chegou da China para me abraçar, depois de trinta e oito horas de viagem, em contraponto ao Rogério “Sagüi” Campello, meu vizinho tão próximo, antigo parceiro do Santo Inácio. Em torno da mesa brindamos à minha saúde, formulando o desejo simples de uma longa e feliz existência. Ao mesmo tempo trata-se de uma complexa trama com o destino, dissimulado contratante de acordos descumpridos. Costuramos cláusulas de harmonia e bem estar permanentes sem disfarçarmos a preocupação com a incerteza de que sejam honradas. Diz o escorregadio signatário que contratos existem para preservar direitos quando do descumprimento. Só nos resta lamentar a observação lastreada pela mais sincera das verdades, contando com a força de nossas preces que isso demore a ocorrer. Para isso precisamos dispor da melhor maneira do prazo concedido, degustando com plena satisfação os goles e porções dessa vida única e prazerosa. O brilho intenso nos olhos, a chama acesa no peito, os afetos acolhidos, os beijos, os abraços, as demonstrações de afeição, explícitas ou implícitas, pequenos tijolos de uma enorme construção. Orgulho-me dos que me cercam de amor, das flores tão diversas em perfume e cor, semeadas em meu canteiro pelas mãos da providência e regadas pela água da vida. Aroma da minha caminhada, moldura dos meus cenários, gratificação do meu plantio, esse heterogêneo jardim pacifica a minha alma e enche os meus olhos de beleza. Mesmo os espinhos, que na colheita eventualmente ferem os meus dedos, valorizam as rosas encimadas em suas hastes. Estou refeito, reenergizado, reabastecido, pronto para mais uma jornada. Hoje, ao acordar desse sonho maravilhoso, olhei para as flores mais próximas e agradeci por estar vivo para enxergá-las mais uma vez. A música agora é a maravilhosa “Pêndulo”, fina ironia. Além do perfume perene, ouço os ecos da felicidade. Destino, muito obrigado. Amo viver.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Papo de elevador

Trabalhei duas décadas numa grande empresa, sempre em salas dos andares altos. Ocupei, nos últimos nove anos daquele período, o andar mais alto, o 29º andar. Perdi a conta das vezes em que subi e desci nos elevadores daquele e de outros prédios. Os ascensoristas na empresa eram deficientes físicos contratados num programa especial e eu tinha um excelente relacionamento com todos eles, belíssimas figuras humanas. Um deles, mais extrovertido que os demais, numa das percorridas entre os andares, mais tarde do que o costume e sozinhos, criou coragem para me fazer uma confidência. “A vida de ascensorista é muito dura, chefia. Ouvimos os assuntos em doses curtas e incompletas. Só nos reservam o início, o meio ou o fim das conversas e ficamos impedidos de entender o conteúdo. Escutamos informações truncadas, um enorme mosaico, uma colcha de retalhos sem o menor sentido. Isso nos angustia, pois sabemos que no dia seguinte tudo se repete.”
Minha consciência censurou o comentário: vida de ascensorista, cheia de altos e baixos. Contudo, fiquei pensando na observação dele e entendi o dilema desses profissionais. Num pequeno espaço onde até um sussurro pode ser ouvido, muitas pessoas não se importam em manter reserva, se calando ao entrar. Alguns aguardam por instantes para dar continuidade à conversa, em especial se o assunto for sigiloso. Mas a maioria das conversas, quando não proibitivas, prossegue com naturalidade. Entretanto, o lapso de tempo do entrar e sair do elevador não permite que o condutor do transporte participe da introdução, do desenvolvimento e da conclusão. Apenas uma dessas fases, quando muito, estará ao alcance do único remanescente de todas as viagens. Do ponto de vista dos interlocutores, não há qualquer prejuízo. Se um deles sair antes do outro, o papo se complementará oportunamente. E estará resolvido o problema.
Num filme protagonizado pelo Mel Gibson, seu personagem possuía o dom de ouvir os pensamentos das mulheres. Ao circular por lugares públicos o falatório parecia uma Torre de Babel, dificultando a compreensão. A situação do ascensorista se assemelha a essa, com o agravante da interrupção unilateral da conversação. Quantas dúvidas persistem na cabeça de um ouvinte acidental, sem que isso lhe dê o direito de dirimi-las? Podemos considerar desde a contratação à dispensa de alguém, passando por um novo projeto, um romance, um problema de saúde, uma questão legal, um investimento, uma perda, uma piada, um comentário sobre futebol, enfim, o que se possa imaginar. Toda a sorte de assuntos entrecortados cuja concatenação das ideias jamais chegará ao conhecimento do isolado responsável pelo elevador. Ironia do destino, permanentemente cercado de tanta gente e ao mesmo tempo convivendo com a solidão dos enredos incompletos.
A bem dos mais curiosos desses trabalhadores ou em respeito à democracia da informação, se é que podemos assim caracterizar, sugiro que os passageiros desse mais seguro veículo se prontifiquem a retomar posteriormente a conversa no mesmo local. Ou gravem tudo num dos inúmeros mini-dispositivos existentes agora, disponibilizando o conteúdo aos ascensoristas no término do expediente. Seria uma espécie de cópia taquigráfica convertida em arquivo sonoro e colocada à disposição do interessado. Quem dispuser de alternativa mais interessante ou factível pode contribuir com a sua sugestão. Convinha que nos articulássemos logo para resolver essa pendência, pois se os ascensoristas se rebelarem e se unirem contra esse desconforto, correremos o risco de colocar em dia os assuntos trancafiados longas horas ali dentro daquele cubículo. Passaremos a conviver com a claustrofobia disseminada, o que está longe de ser uma boa solução.
Você já havia pensado mais detidamente nisso ou não anda de elevador?

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Reencontro

Costumo dizer que a citação é gêmea siamesa do esquecimento, porém vou arriscar. Abel, Abílio, Afonso Eduardo, Alexandre Fernandes, Alexandre Costa, Aluísio, Ângela Moraes, Antonio Marcos, Antonio Paulo, Cláudia Sant'Anna, Constance, Fernando Gamma, João Carlos Chaves, Lúcia Miceli, Marcos Sarvat, Margarida, Maria Cristina Barros, Maria Helena, Maurício Keller, Mauro, Nazaré, Ricardo Faria, Roberto Jesus, Rogério Campello, Ruy. Ontem, cada um desses colegas, alguns nominados com sobrenome a título de identificação, respondeu presente numa chamada sem pauta, sem mestre, sem a austeridade das antigas salas de aula. Mas estávamos todos lá, dando um abraço simbólico naqueles quase duzentos e cinquenta sobreviventes que concluíram o curso no Santo Inácio em 1974. Todos estivemos ali de alguma forma, em pensamento, em intenção, em lembrança. A querência pairava no ar, num banzo de escravos de momentos mágicos, de reminiscências tão gratificantes quanto enriquecedoras. A sensação prenhe da riqueza maior que é a valorização da vida, a celebração de mais um ano juntos.
Não usávamos uniformes, não sentávamos em carteiras, nem portávamos as cadernetas. Estávamos todos à paisana, informalmente distribuídos por uma longa mesa, entre chopes, whisky, sucos e refrigerantes, além de fartas porções de crepes e pizzas. O que não nos impediu de fazermos outra de nossas viagens no tempo, lembrando de inúmeros companheiros que ali não estavam e das situações marcantes ou inusitadas com os quais tivemos oportunidade de viver. Esse exercício metafísico nos retira de uma zona de conforto e acomodação, aumentando a sensação de bem estar ao liberar uma espécie de endorfina espiritual. Ao transcender a realidade que conhecemos, passeando por décadas de acontecimentos diversos, sentimos a adrenalina anímica a nos renovar o espírito.
Corremos pelos corredores do passado, pelo recreio de nossas vidas, passando com louvor nas provas do destino, resgatando deliciosas experiências que ajudaram a escrever as páginas da história de cada um de nós. Sempre que isso acontece, o ambiente se enche de uma energia maravilhosa, as auras de todos brilham intensamente, o corpo rejuvenesce. Também falamos de fatos recentes, atualizando registros sobre a caminhada de quem não temos visto. Um e outro contribuem com informações preciosas, dados merecedores de uma compilação mais detalhada e precisa, que um dia comporá um livro de nossas memórias, projeto pelo qual me responsabilizaram. Logo eu, meio ausente dos encontros, por motivos alheios à minha vontade, óbvio. O projeto existe, não esqueci.
De uma certa maneira me senti orgulhoso dessa vez, pois o mote do reencontro foi a comemoração do meu aniversário, da Cláudia e da Maria Helena. A badalação ajudou a aumentar o quorum que andava meio baixo nas reuniões das primeiras terças-feiras do mês. Seja como for, a minha alegria nesses eventos não é novidade, eu a transpiro por todos os poros, a transformo em beijos e abraços, saudações efusivas ao rever gente tão querida. Curiosa e ironicamente, o local era o Frontera, talvez apenas para ratificar a inexistência de fronteiras a nos separar. Pelo simples fato de estarmos ligados de forma indissociável por uma relação muito forte, razão da nossa união em definitivo, bissexta ou não.
Para completar o quadro, ao invés do impessoal transporte de um táxi de fim de noite, consegui uma carona até a minha casa. A Cláudia e seu marido Carlos, ex-inaciano de 1968, se propuseram a entregar em domicílio essa encomenda transbordante de satisfação. Isso ainda estendeu por todo o percurso a perambulação pelos cantos da memória e o prazeroso compartilhar de outras lembranças. Meu aniversário é sábado, mas o presente chegou mais cedo. Hoje é feriado nacional, menos no meu peito, onde algo pulsa muito mais ativamente no ritmo da celebração de ontem. Essas injeções milagrosas de felicidade nos reanimam e nos impulsionam a um viver mais pleno. Valeu demais, inacianos e inacianas do meu coração.

domingo, 4 de setembro de 2011

Carta aberta

Malcher, meu amigo, abro essa mensagem e o meu coração para me solidarizar com a sua dor inimaginável. Acordei hoje sob o impacto dessa triste notícia. A inversão total da lógica de nossa existência choca muito mais do que a inestimável perda sofrida por um pai. Representa um momento tão assombroso que nos atemoriza até discorrer sobre o assunto. Nunca estamos preparados para a morte, por mais que nos doutrinemos espiritual e mentalmente. A despedida precoce de uma filha, então, nos remete a um incisivo questionamento sobre a justiça desse plano.
O Grande Arquiteto do Universo muitas vezes traça linhas imperceptíveis à nossa compreensão, nos confunde a crença, nos anestesia a razão. Resta saber como seguir adiante, descobrindo como preencher a lacuna e prosseguindo uma caminhada incompleta em definitivo. Ironicamente, talvez o bálsamo procurado para esses casos esteja na maior valorização da vida. As estrelas de grande magnitude desaparecem sob o impacto de um rearranjo cósmico. A explicação existe mesmo na percepção embaçada pelas lágrimas mais salgadas da perplexidade.
Numa dimensão imprecisa, à qual não temos acesso, se reúne uma fraternidade despojada dos valores conhecidos por nós. Enquanto aguardamos pela hora em que o portal nos dê passagem, devemos cultuar permanentemente a alegria de viver. Sobretudo em memória aos que protagonizaram as melhores cenas do papel que interpretamos por aqui. A cortina abre e fecha todo dia, em vários palcos, nos mais diversos lugares e situações. O público muda, os atores são substituídos, ouvimos aplausos, choro, gargalhadas, percebemos até o silêncio. Os sentimentos se alternam, os temas às vezes os mesmos, o espetáculo prossegue em homenagem aos que de melhor fizeram pela arte da vida.
Perdoe, meu prezado amigo, a presunção de lhe oferecer em palavras o cicatrizante eficaz para esse corte profundo e doloroso. A paz de espírito sempre se esconde num canto da alma onde só os próprios amargurados conseguem chegar. Meu impulso de escrever uma carta aberta tem a intenção de consolidar uma egrégora que ilumine seu pensamento e aplaque o seu sofrimento. Essa conjunção de forças se sobrepõe a esse texto, aos meus desejos e à sua receptividade. Desconhecemos o pleno alcance de nossa capacidade, eterno impeditivo de compreender mais do que enxergamos. E está no equilíbrio a senha para os nossos reencontros, em qualquer significado dessa palavra.

Um grande e solidário abraço.

Se barba fosse respeito, bode não tinha chifre.


O dito popular "Se barba fosse respeito, bode não tinha chifre" me foi lembrado hoje, a título de tema para o blog, por um grande amigo, Oscar Goldemberg, aniversariante da próxima quarta-feira. É incrível como a sabedoria popular nos traz momentos de descontração. Quem jamais se divertiu com as frases escritas nos pára-choques dos caminhões? Precisamos ter cuidado para não desviar muito a atenção ou, se for caso, pedir ao carona que leia as pérolas orgulhosamente ostentadas pelos caminhoneiros. Vez por outra há concursos, a exemplo das promoções da revista Quatro Rodas, estimulando que se fotografe a frase e escolhendo a melhor do mês.
Vemos expressões famosas modificadas, provérbios adaptados, piadas curtas, verdadeiras lições de vida em modelo reduzido. Há diversas relações dessas gotas de reflexão muitas vezes jocosas, provavelmente originando publicações informais, ainda que o anonimato da autoria impere na maioria. Isso denota uma enorme criatividade de quem sobrevive de um trabalho bastante árduo. Os transportadores desse rico fraseado conduzem cargas das mais variadas espécies, com sacrifício inversamente proporcional à leveza dos pensamentos apresentados. Nos veículos que os aprisionam às estradas, estão submetidos aos mais diferentes riscos, seja de acidentes ou assaltos. Em geral mal cuidadas e traiçoeiras, as pistas oferecem pavimentação inqualificável, enquanto a segurança é praticamente inexistente.
Mais do que qualquer outro cidadão ao volante, esses trabalhadores desconhecem a real possibilidade de retorno após cada aventura vivida em uma viagem. Dependem da certeza de carga na volta, garantindo o equilíbrio na relação custo-benefício, motivando fretes negociados a valores escorchantes. Se submetem a estresse permanente, dirigem sob o efeito de “rebites”, anfetaminas que disfarçam a fadiga e potencializam as chances de graves colisões, além de causarem sérios reflexos, temporários ou não, na saúde desses indivíduos. Portanto, por trás do humor e da inteligência das escolhas do que escrevem na traseira dos caminhões, se esconde um conjunto de problemas que pode afetar até mesmo a economia nacional. Num país de matriz de transportes escrava das rodovias, os principais atores são relegados à enésima posição na escala de prioridades.
Em seguida apresento uma pequena seleção das citações que seguimos inconscientemente no curto espaço de tempo até a ultrapassagem dessas máquinas de moagem ambulantes. Quem sabe seja uma forma de chamar a atenção para uma situação que se arrasta há décadas e só se agrava com a evolução da potência dos motores, com o incremento das cargas e a redução dos prazos exigidos pelos setores que dependem dos insumos.

Saudade é aquilo que fica daquilo que não ficou.
Se a morte for um descanso, prefiro viver cansado.
Se andar fosse bom, carteiro seria imortal.
Se bebes para esquecer, pague antes de começar.
Se chiar resolvesse, sal de frutas não morria afogado.
Se dinheiro não traz felicidade dê o seu para mim e seja feliz.
Se disserem que te esqueci, reze, porque morri.
Se ferradura desse sorte, burro não puxava carroça.
Se não existisse avião e político andasse de caminhão, as estradas teriam mais conservação.
Se não puder ajudar, atrapalhe, afinal o importante é participar.
Se não sabe dançar, não diga que a orquestra é ruim.
Se não enxerga o meu retrovisor, cuidado, também não estou te vendo!
Se o amor é cego, o negócio é apalpar.
Se você não faz parte da solução, faz parte do problema.
Se sorrir quando tudo deu errado, já descobriu em quem pôr a culpa.
Seja como o sândalo: perfume o machado que o fere.
Seja diferente, seja você mesmo.
Seja legal com seus filhos. São eles que vão escolher seu asilo.
Só não erra quem não faz nada
Sogro rico e porco gordo só dá lucro depois de morto.
Sou pobre, mas sou feliz: uma das duas é mentira.
Sou velho, mas não renuncio.
Sua pressa pode apagar um sorriso.
Suba na vida, mas não faça ninguém de escada.
Ter a consciência limpa é ter a memória fraca.
Trabalhar para patrão pobre é pedir esmola para dois.
Transportando o progresso da nação a troco de humilhação.
Tudo que é bom na vida ou faz mal ou é pecado.
Veja os teus erros, depois corrija os meus.
Viajo porque preciso, volto porque te amo.
Vinho, ouro e amigo, o melhor sempre é o mais antigo.
Vivo correndo para não morrer devendo.
Você deve ter mais cuidado que o Capitão Gancho coçando o saco.
Você deve ter mais sonhos do que memórias.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Divagando

Pensei em escrever sobre a absolvição de mais uma corrupta na Câmara Federal, mas a reincidência e a larga margem de votos favoráveis me desestimularam. De novo a sombra acolhedora dos votos secretos garantiu a impunidade, embora eu acredite não ser a única motivadora. Aquele ambiente acima da lei, useiro e vezeiro em “ações entre amigos”, não justifica a perda de tempo com esse tipo de iniciativa. Merece outra atitude, mais incisiva e saneadora, diria até profilática. Mas isso é assunto para ocasião oportuna, mais próxima de data estratégica. Só para não passar totalmente em branco, enojam a falta de caráter e a total indiferença à ética naquela confraria.
Essa insatisfação procede pelo inaceitável comportamento de supostos representantes do povo. Nesse caso, devemos exercitar o direito sagrado dos seres insatisfeitos por natureza. Mas, em geral, a inquietude impera no reino das mudanças prementes, quando a alteração do rumo tomado se mostra necessária. Muitas vezes o imobilismo nos leva ao estresse, estimulados que somos pelo instinto mutante dos inconformados. Em permanente erupção de não conformidades dos nossos padrões de exigência, o vulcão expulsa de suas entranhas a lava da estagnação.
Corre sério risco de se adaptar à falta de ânimo quem se propõe a aceitar sem resistência as condições normais de temperatura e pressão. A vida sempre se apresenta dinâmica e volúvel, num balé sincopado de pessoas gravitando em torno de seu núcleo de decisões. Há um vírus de intempestividade inoculado em cada um de nós, pronto a aflorar seus efeitos colaterais quando menos esperamos. Temos um potencial chute no balde preparado todo o tempo, com o corpo ajeitado na direção entendida como a mais adequada. A potência do arremate é diretamente proporcional ao estado de espírito do momento.
Os derrotistas, pessimistas de carteirinha incapazes de se rebelar diante das mais ostensivas demonstrações de incoerência, mesmo eles estão sujeitos a uma revolta eventual. Na explosão de magnitude extrema dos incômodos represados, revelam um altíssimo poder de destruição. São mais calados, quase silenciosos, até irromperem numa verborragia avassaladora, numa saída repentina da letargia para descrever o indescritível e qualificar o inqualificável. Ficam incontroláveis, destemperados, hostis. Passam de criaturas a criadores em fração de segundo.
Os celerados representam maior perigo. Dotados de um minúsculo, quase imperceptível, rastilho de pólvora condutor ao estoque de explosivos, detonam tudo com muita antecedência. Não raro sucumbem no próprio cogumelo da devastação, desaparecendo em meio às cinzas e aos escombros do imediatismo. Preferem perder espaço do que a oportunidade do confronto, guerreiros ensandecidos e alimentados pela indignação absoluta. Inobstante sua beligerância e acentuado risco, têm lá a sua utilidade, disponíveis ad eternum para o alavancar de reações.
Os otimistas possuem um perfil mais equilibrado, especialistas na crença de um mundo melhor, construído a partir do resgate de valores esquecidos. Acreditam na renovação da filosofia de vida, fundamentada nos princípios éticos e na valorização da moral. Apreciam a defesa de seus conceitos, prezam o bom combate pela argumentação de ideias vanguardistas. Odeiam discutir o óbvio, mas consideram imprescindível a democracia plena, vivendo da esperança das mudanças desejadas.
Em qual deles você se enxerga?