Ouço o som do novo dia. Carros,
passos, portas, pássaros, louças, até um galo distante ecoa em meus ouvidos. Eis
o velho desafio de novo. Abro os olhos e a luz do dia anuncia o reinício de
tudo. A força para recomeçar tem nome de compromissos maiores. O privilégio de
continuar a viver cobra um preço pela responsabilidade. Não há tempo para
lamentos nem razão para esmorecer, há motivos mais nobres exigindo participação
completa. Os astros continuam a girar e o universo a exercer a influência sobre
nós. A vida torce e distorce sem nos dar o direito de fraquejar. O estímulo vem
de cada preciosa rotina, do respirar com normalidade, do enxergar o entorno, do
sentir o aroma das flores, do ouvir o canto dos passarinhos. A felicidade reside
nos pequenos detalhes, no repetir de funções já consideradas automáticas.
Desfrutar da alegria de abrir os olhos e ver o mundo por si só premia o esforço
de perseverar na caminhada. Nenhum obstáculo pode oferecer maior resistência do
que a possibilidade de perder a chance de usufruir das coisas de simples
aparência à nossa volta. O mistério da existência refuga o desânimo, buscando
em novas portas abertas as alternativas de eventuais janelas fechadas. Manter a
chama acesa nos reanima frente às dificuldades, cria disposição para driblar as
adversidades. Viver sempre será melhor, afinal, alguém conhece algo mais
atrativo? Sob qualquer argumento ou restrição, a resposta nos impõe contornar
as eventualidades e manter o passo. Embora semelhantes, os dias diferem uns dos
outros, bastando aguçar a percepção. A roupagem usada na apresentação das
situações altera o quadro, modificando o sentido das ações e a lógica dos
acontecimentos. Mudar um percurso pode transformar os momentos, perceber uma
forma nova de resolver uma pendência, também. Os artifícios nos oferecem total
liberdade, apenas não aceitam a desistência. Ao fim de mais uma jornada
estaremos exaustos, mas satisfeitos. Dormiremos cônscios do dever cumprido, descansaremos
ansiosos pelos sonhos indicando mais do que a presença do desconhecido.
Descobriremos mensagens do subconsciente, concluiremos pela integral sobrevivência
mesmo em estado de repouso. Mergulhados numa viagem no intervalo do irreal,
navegamos sem bússola, guiados pelo GPS do caminho virtual, onde os fatos,
pessoas e lugares espelham desejos e projeções da realidade. A vida, portanto,
se mostra plena e rica em todos os sentidos. Nesse exato momento tenho um
fraterno amigo do outro lado do mundo, solitário mesmo cercado por quase um bilhão e
meio de chineses. Dedico a ele esse texto, buscando amenizar seu forçado isolamento em mais um dia especial. Não
importa onde estejamos ou quem sejamos, Mermão. A vida, só nos resta desfrutá-la da
maneira mais prazerosa possível. Com a devida licença dos problemas, vamos
viver.
quarta-feira, 23 de maio de 2012
domingo, 20 de maio de 2012
Reflexão
Quais foram ou serão os padrões,
sem dúvidas ou meras questões,
certezas sem credo ou razão,
sentenças sem medo ou perdão?
Ditames da mente, não raro,
deram ou darão todo amparo
a conceitos de auto-ajuda,
quem quiser que se iluda.
Momentos de insanidade,
lampejos de equilíbrio vão,
ao se trocar sinceridade
pelos repentes da emoção.
Flui a verdade nos fatos,
transpira na pele o calor,
batalhas de gatos e ratos,
guerras de uterino furor.
Teimosia de uma vida cruel,
dias de boas comidas caseiras,
noites de fartas doses de fel,
todas em partes, partes inteiras.
Vivo hoje qual no fim estivesse,
chegará a hora superior à prece,
separando essência e matéria,
resultando uma luz etérea.
sábado, 12 de maio de 2012
Mãe
Ser excêntrico
e sem definição,
prenhe
de lógica e de precisão.
Mais
conteúdo, menos matéria,
pouco
terrena, muito etérea.
Ternura
e carinho por osmose,
calor
e amparo em simbiose.
Viaja
anos-luz num breve momento,
vê
outros planos e um novo tempo.
Produz
puro amor, profundo Mãestério,
difunde
o saber, real Mãegistério.
Mãe,
mother, mère, madre, mamma,
estórias
à noite na beira da cama.
Embalo
do sono em quatro estações,
alívio
nas dores de mil contusões.
Curativo
do corpo, lenitivo da alma,
conselho
tranquilo, dose de calma.
Natural,
adotiva, anseio do leite.
água
e vinho, às vezes azeite.
Senda
indicada, sentido de viver,
matando
a fome, saciando o beber.
Equilíbrio,
refúgio, porto seguro,
brilho
do sol no céu mais escuro.
Resgata
a essência e o sopro vital,
protege
as crias das forças do mal.
Guerreira
incansável, final guardiã.
redoma
eterna da existência vilã.
sábado, 5 de maio de 2012
Um novo caleidoscópio
Lembrava esses dias do
caleidoscópio, objeto perdido nas memórias da minha infância. Interessante a
atração por aquela visão embaralhada de cores e formatos, modificada pelo
simples girar do eixo principal. Não havia qualquer outro aditivo além da
mecânica do movimento e da imaginação fértil do observador. Muitos momentos de
total abstração nas imagens multiplicadas pela mutação de figuras dinâmicas.
Ocupei boa parte da minha vida viajando naqueles replicantes fragmentos de
vidro, tantas fossem as angulações e os reflexos de espelho. Inspirado nesse
invento do século XVII, hoje reinvento as cores da minha existência através do
giro diário do corpo celeste onde resisto fragmentado. Enquanto a galáxia se
movimenta, as noites se estampam numa tela salpicada por minúsculos pontos cujo
lume vem de um tempo remoto só agora enxergado. Vagando no silêncio acordamos
de sonhos interrompidos ou vivemos pesadelos perpetuados pelo mergulho na
escuridão das incertezas. O percurso termina quando cintila a claridade espelhada
nas janelas marejadas da alma, impondo a conclusão de mais um ciclo e retomando
a aflição do recomeço. Olhar no caleidoscópio do destino gerou um contraponto
ao lúdico passatempo de menino. Numa estranha e assustadora morfologia, as
figuras do cotidiano impactam as expectativas e desestimulam a tentativa de
nova combinação das peças. O refúgio de criança se transformou num desafio
perigoso onde tanto a geometria quanto os matizes aprofundam as dúvidas e
ameaçam a razão. Distorcido o significado da diversão, as combinações já não
ornamentam pelos efeitos visuais, mas confrontam a estética dos sentidos. A
simetria dos arranjos repete as sombras de erros capitais e as sobras de
imperfeição. A visão caleidoscópica atual mostra homens se apequenando em recorrentes
quadros dantescos, distantes do aprimoramento como estive da verdade em minhas
projeções infantis. O estímulo da busca por novos padrões se extinguiu, nem há
mais felicidade na composição de novas perspectivas. As cores mascaram, os
brilhos ofuscam, os traços amedrontam. Novo e velho se confundem na
impossibilidade da mudança, espreitando apenas pela oportunidade de ocupar o
espaço cobiçado. Os desenhos agora possuem vontade própria, se apresentam num
balé hipnótico, agrilhoam mentes e olhos desavisados. Ao se libertarem dos
limites do brinquedo, se apossaram dos desígnios de quem observava sem
compromisso. Trocaram de posição e nos veem através de um enorme caleidoscópio.
Brincam de manipular a humanidade, interferem em nossos caminhos, iludem com a alternância
das peças, de acordo com o posicionamento dos astros, conforme a incidência da
luz. Justa resignação de meras partículas de vida, nós, de criadores a
criaturas.
quinta-feira, 3 de maio de 2012
Dor maior de idade
1º de maio de 1994, outro
domingo de manhãs alegres. Fazia sol e a rotina das corridas de Fórmula 1 abria
a jornada esportiva daquele dia. O Brasil se orgulhava de ter um ídolo mundial entre
os pilotos da categoria e acompanhar as provas era quase obrigação de quem
gostava do esporte. Aquela etapa de Ímola foi palco de acidentes graves,
inclusive com morte, durante os treinamentos. Pairava uma atmosfera sombria no
ar, uma sensação de outros problemas na pista. Mas ninguém, muito menos eu,
esperava uma tragédia envolvendo o nosso Ayrton Senna da Silva. Em frente à TV
eu observei a saída reta do Williams da curva de Tamburello e a pancada nem tão
expressiva. As cenas seguintes mudaram a minha expectativa. O tombamento
estranho da cabeça do Senna e a inércia a seguir pareceram durar uma
eternidade. A interrupção da prova, o socorro e o drama posterior consumiram
cada segundo dos admiradores daquele vingador nacional. Ele representava o
sucesso brasileiro, ainda que em parceria com máquinas estrangeiras. Aquelas intrincadas
simbioses de parafernália mecânica e computadores só alcançavam a perfeição sob
a maestria de um gênio nascido em terra
brasilis. Essa honra carregávamos no peito, dirigindo junto com o Ayrton em
cada ultrapassagem, derrapando e acelerando no limite. Vendo o herói nacional
inerte em seu cockpit, apertou o nó
na garganta. A alma lavada em vitórias inesquecíveis turvou de repente,
enlutada pela trapaça da sorte. Mesmo sem a confirmação eu senti a certeza do
desfecho infeliz. Levantei da poltrona, andei até a varanda e, distante
centenas de metros, lá estava um vizinho desolado em outra varanda. A
cumplicidade do sofrimento brasileiro se pronunciou numa rápida troca de
olhares. Abaixamos a cabeça num movimento quase simultâneo, simbolizando dor e
respeito. Fui para o Maracanã com o peso do destino em meus ombros. No trajeto
a notícia se confirmou após um tempo de esperança cruel e dos estertores da
ansiedade. Pela primeira vez um Maracanã lotado por duas torcidas rivais cantou
a uníssona homenagem ao mesmo ídolo. A tristeza embargou a voz e encharcou os
olhos. Sucederam-se dias de baixo astral e lamentação. O sentimento de perda se
assemelhava a um ente querido, afinal o recebíamos em casa domingo sim domingo
não. Enfim, já se foram dezoito anos desde aquele trágico dia. A dor completou
maioridade sem seguir em frente. De lá para cá jamais assisti outra competição
de Fórmula 1. Desde então cumpro esse permanente ato de silêncio. Valeu, Senna.
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