domingo, 30 de setembro de 2012

Reminiscências de infância




A última semana sacudiu a minha memória de maneira significativa. O período já caminhava para um desfecho comum quando o Flamengo resolveu alegrar meu coração entristecido. Acostumado às grandes campanhas e às vitórias consagradoras, uma sucessão de desmandos e uma administração da pior espécie levaram o Mais Querido a um momento sombrio e pessimista. Sob uma direção omissa, equivocada e distante dos ideais rubro-negros, o time se viu mergulhado numa crise perigosa. Obrigado a enfrentar um dos times da moda, o vice-líder do campeonato, surpreende e vence de forma convincente. Numa exibição com a cara do Flamengo ao qual me acostumei, garra, técnica e aplicação tática me fizeram vestir outra vez o Manto Sagrado das glórias do passado.
Quase em seguida soube da morte do Ted Boy Marino, um dos meus ídolos de infância, astro do telecatch das noites de sábado. Podemos traduzir suas lutas como uma espécie de MMA de mentira. Elas povoaram a imaginação da garotada e de muito marmanjo do final dos anos 60 e início dos 70, primeiro na TV Excelsior e depois na TV Globo. Lembro da voz do locutor Tércio de Lima narrando o Telecatch Montilla com entusiasmo, valorizando os embates dos mocinhos Ted Boy Marino, Tigre Paraguaio e o misterioso Verdugo contra os vilões Mongol, Rasputin Barba Vermelha e Aquiles. O árbitro mais famoso, o impagável Crispim, tinha muito trabalho com as tesouras voadoras, dublinelsons, encostamentos de espáduas e inúmeras braçadas. Sem contar com as decisivas cuteladas do Verdugo. Os vilões abusavam de golpes baixos como dedos nos olhos ou puxões de cabelo, até os massagistas entravam no ringue para atacar os mocinhos. Tudo muito bem ensaiado numa ótima coreografia, levando ao delírio muita gente que acreditava ser verdade. A contagem final do juiz da vida para o antigo ídolo me deu um knockout do qual despertei naquela época.
Nem bem me recuperara da perda do lutador e a Hebe Camargo dá adeus. Ao contrário dos astros do ringue, não fui fã da Hebe e não tinha a iniciativa de assistir seus programas. Mas havia alguém lá em casa que não perdia as entrevistas de artistas, cantores e políticos feitas, segundo minha mãe e milhões de outros admiradores, pela primeira e melhor apresentadora da TV brasileira. Esse hábito minha mãe cultivou até os dias de hoje, defendendo a Hebe pela sua autenticidade, franqueza e alegria.  Assim, vez por outra eu participava dessa programação por osmose. Em tempos de uma TV só em casa, minha mãe aturava o telecatch e eu convivia com a Hebe. Afora os selinhos e as extravagâncias da primeira dama televisiva, valia a oportunidade de conhecer melhor a música em voga e os principais artistas em cartaz. E não se pode negar a simpatia e a competência da loura pioneira nesse estilo de programa. Ao sair de cena em definitivo, a apresentadora me fez voltar a sentar no sofá da minha sala quando criança.

domingo, 23 de setembro de 2012

Resolvendo os problemas do mundo




Mais uma semana termina num sábado, diferente apenas pelo descortinar da primavera. No equinócio de setembro o dia tem a mesma duração da noite. Talvez isso explique um dia raro de reencontro de queridos amigos no outono da vida. Juntos desde as primeiras estações da existência, compartilharam o vicejar da primavera, aproveitaram o calor do verão e agora dividem a experiência outonal. Um deles se queixara da minha ausência prolongada, mesmo reconhecendo ser forçada. A amizade fraterna considera suave chamar de lapso o tempo decorrido desde o encontro anterior em janeiro. O período quantificado virou surpresa desagradável, colhendo minha consciência como se faz com as flores da estação. Segundo o lamento amigo, meu retorno teve a dor de um parto. Minha presença amadureceu numa gestação de nove longos meses. No eterno confronto de prós e contras resta o conforto de nossa falta sentida.
Superados o impacto do distanciamento e os cumprimentos calorosos, viramos a página e iniciamos o assunto. Rever pessoas tão caras sempre aumentou a relevância das reuniões em torno de uma mesa. A história testemunhou o mesmo ao redor de fogueiras e távolas. De temário mais ou menos significativo, florescem debates abastecidos com opiniões diversas. A democracia plena e a verdadeira liberdade de expressão trazem à tona profundas questões estruturais e filosóficas tanto quanto abordagens superficiais e simples. Nada se resolve, mas se lava a alma das aflições diárias. Pouco se transforma, exceto pela metamorfose de semblantes. Na tribuna livre das confrarias, o ar sereno dos conformados de cada dia dá lugar ao destemido vigor dos oradores de ocasião.
Defendemos os oprimidos, julgamos os impunes, sentenciamos os culpados. Nenhuma injustiça nos escapa e cobramos das viúvas as balas das execuções. O avançado da hora sinaliza o final. Saímos como chegamos, em meio a abraços demorados e beijos de irmãos. A celebração faz parte do respeito ao imponderável, um ritual valorizando a incerteza da repetição. Não concluímos tudo apenas para permitir outra oportunidade. Reservamos para a próxima os temas da sua vez. O local é incerto para despistar os ardilosos inimigos da humanidade. Basta um aviso pouco antes, sem agendamento, sem prévio compromisso, sem deixar rastros. Afinal, só ao término de nosso inverno estaremos impedidos de reencontrar queridos amigos para resolver os problemas do mundo.

sábado, 8 de setembro de 2012

Iludindo o tempo




Pesquisa após pesquisa, a física quântica revela novidades beirando o inverossímil. Cogita-se viajar no tempo, ainda não se sabe quando. O estágio atual dos estudos nos compara a amebas sonhando com viagens espaciais. Fala-se no “paradoxo do avô”, a possibilidade de se retornar ao passado e matar o pai do próprio pai, eliminando a chance de ser gerado. Essa e outras questões complexas se antepõem à concretização das hipóteses viáveis na teoria e até em alguns experimentos.
Em contraponto a esse emaranhado de dúvidas há quem viva a simplicidade de preciosos minutos. A sobrevivência tem preço e exigências proporcionais às demandas de cada um. Os abutres famintos também sobrevoam, aguardando a oportunidade do bote certeiro. As ameaças de um mundo materialista açoitam a todos. Não podemos nos manter escravizados. A solução exige o aperfeiçoamento do ser humano adormecido no interior de todos nós, através do resgate de valores esquecidos.
Produto da safra de setembro de 1956, completo cinquenta e seis anos agora. Na coincidência das dezenas o balanço de uma vida. Tenho hoje mais quinze anos do que meu pai quando morreu. Nascemos ambos em 10 de setembro e ele se casou na mesma data. Nasci em tempos de parto normal, da quase infalível contagem de luas ensinada pelos índios. Fui o presente de aniversário de 26 anos de um jovem dois anos mais velho que o meu caçula hoje. A título de bônus, presenteei também um feliz casal pelo primeiro ano de casamento.
Pena que as comemorações cumulativas nem debutaram, sequer chegaram a efêmeros quinze anos. Os cientistas decodificaram o DNA, mas nos devem a viagem ao passado. Enquanto isso viajo pelas lembranças. Meus filhos jamais se interessaram pelo “paradoxo do avô” e só conheceram o “velho” Dario por fotografia. Em outra coincidência, já sou mais longevo do que ele os mesmos quinze anos. Curiosa constatação dessa dimensão dita ilusória por muitos estudiosos, contagem crescente em números, decrescente em vida.
Pelo sim, pelo não, comemoro sempre em dobro, celebrando por ele e por mim. Afinal, temos muito mais em comum do que a data de nascimento. Meus cromossomos carregam seus genes, a hereditariedade nos assemelha, a essência se transferiu e segue em frente com os meus filhos. Teremos eterna cumplicidade no calendário e na perpetuação de nossa presença por aqui. Pouco importa se o tempo é uma ilusão, se continuaremos a iludi-lo.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Futebol geriátrico



Será demolido o palco da final da Copa de 1958, o estádio de Hasunda em Estocolmo. Por conta disso, houve um encontro comemorativo daquele dia inesquecível. Alguns cronistas menos informados se impressionaram com o aspecto conservado do Pelé entre os demais homenageados, atribuindo ao Rei mais esse fenômeno. Ora, o Pelé em 1958 era um garoto de dezessete anos de idade entre balzaquianos, a maioria com pouco menos ou mais de trinta anos. Passado mais de meio século, chega a ser covardia comparar um senhor septuagenário com um grupo de octogenários. Nessa faixa etária uma década faz muita diferença.
A minha turma do Colégio Santo Inácio postou no facebook as fotos de um encontro futebolístico nesse fim de semana. A aventura dos meus contemporâneos foi encarar um time mais novo quase dez anos. De forma bem adequada, a pelada foi batizada de futebol geriátrico. Comentando o evento, eu e outros reconhecemos não reunir mais condições de atuar nem nessa divisão. Difícil deixar de recordar o viço da juventude, em especial porque o campo era o mesmo de muitas jornadas e algumas das pessoas também. Naquela época, se fosse possível, jogávamos duas, três vezes seguidas.
Parece inapelável uma saudade daquele tempo, quando de certa maneira éramos invencíveis. Não nos jogos, pois perdíamos, ganhávamos ou empatávamos, como dizem os doutos comentaristas da bola. Falo de outra invencibilidade, a de um sopro divino, de um ar jovial inatingível pelos problemas mais complexos. A vida então se resumia a agendas saudáveis de corpo, mente e alma. Viver, longe de ser um fardo, refletia uma leveza permanente. Quase flutuávamos ao invés de caminhar, alçávamos voo ao correr.
Hoje o tempo já começa a cobrar seu inexorável preço, uma conta impossível de “pendurar”. Já nem são tão raras as contusões crônicas e as agudas respostas de músculos e articulações. Embora em pleno outono das estações da existência, ainda vai demorar muito para apagar da memória os felizes registros do nosso verão. Esses heróis do futebol geriátrico aplicaram um “doping do bem” em tantos ex-atletas. Injetaram alegria numa overdose de lembranças em todos nós, parceiros de cabeça descoberta ou de cabelos nevados.