terça-feira, 27 de setembro de 2011

Cosme, irmão de Damião

Antes de tudo, ratifico que o blog é laico, respeitando todas as manifestações de fé. Portanto, mais do que uma homenagem aos santos gêmeos Cosme e Damião em seu dia, e inspirado nos médicos árabes Acta e Passio, seus nomes verdadeiros, persigo a cura do mal comum e sou forçado a descrer das coincidências. Não tenho o hábito de assistir programas apelativos, daqueles que nos apresentam situações pessoais desesperadoras. Deploro o sensacionalismo barato que menos promove a mudança do estado de coisas e se vale do caos para aumentar a audiência. Entretanto, outro dia fui pego de surpresa ao desativar o modo de gravação na TV. A cena do momento era de um quadro conhecido, cujo objetivo é a reforma de carros muito velhos, transformando-os em veículos novos e muito bem equipados. A ideia é criativa, embora encerre uma dose significativa de exploração da miséria alheia. Afora os aspectos demagógicos e até uma futura intenção política do apresentador, a melhor experiência foi testemunhar o humor do personagem central da situação.
O ponto focal do quadro era um típico cidadão de classe pobre, eletricista com remuneração em torno de R$ 1.000,00/mês, aparentando uns trinta e poucos anos, responsável por uma família de sete pessoas. Ele, a mulher, três adolescentes do primeiro casamento dela e duas crianças pequenas da nova união. Sete moradores de um casebre em Osasco, com dois quartos, cozinha e um banheiro sem porta. Ela em tratamento de câncer no INCA/SP, parecendo um pouco mais velha que o companheiro, em razão da doença ou pela diferença etária mesmo. Enfim, o contexto mostrava uma realidade bastante dura, em especial diante da gravidade do problema de saúde da esposa.
A história do Cosme, assim denominado por ter um irmão gêmeo, o Damião, começa no interior da Bahia, num colchão cheio de percevejos que o picavam à noite, perturbando seu sono de criança. Lá não dispunha de água encanada, de esgoto ou de comida suficiente. Melhora um pouco ao chegar a São Paulo, trazido pela mãe que passa a sustentá-los como diarista. Complica com a nova união da mãe, pela opção de devolver os filhos à cidade de origem para ficarem com o pai. Renova a esperança no retorno à capital paulista e culmina com uma promessa que Cosme fez a si mesmo. Ele jura voltar um dia à terra natal em carro próprio e desmentindo os que afiançaram que os dois irmãos virariam criminosos na cidade grande. Sua alegria aumenta quando ratifica a honestidade que norteia seus atos, exemplo que procura passar aos filhos.
O que mais surpreende nessa epopéia moderna é o inabalável sorriso expresso por Cosme o tempo todo. Inobstante a eventualidade de uma e outra lágrima ao longo do relato, ele mantém um riso largo e otimista, falando da vida com a certeza de que as coisas vão melhorar. Reafirma a cada palavra o compromisso com os cinco filhos, assegurando que todos estudarão e terão um futuro melhor. Sua determinação heróica se materializa em recibos de matrícula dos mais velhos em cursos técnicos, prova cabal que ele faz questão de mostrar. Emociona observar uma pessoa com tamanha dificuldade se esforçar diariamente para vencer duríssimos desafios sem se desviar da retidão, da ética e da moral. Não pela essência em si, pois tais valores constituem dever de cidadania. O que sensibiliza é a constatação desse perfil do povo num país onde grassa a corrupção em todos os escalões governamentais, conforme enxergamos nos escândalos nossos de cada dia.
Na semana antes do dia de Cosme e Damião esse caso fica mais emblemático, o acaso não existe. Fiquei imensamente feliz de ver a família do sempre risonho Cosme de carro novo e melhor alojada, após a recuperação do velho automóvel e da reforma da casa em ruínas. Reabasteceu meu espírito cidadão e reenergizou minhas baterias. Nossos lamentos parecem injustificáveis diante da batalha diuturna de uma típica família pobre, sobrecarregada pela injustiça social e por uma grave enfermidade. Somos privilegiados, diria que escolhidos, parcela infinitesimal de protegidos pela sorte que ainda se julga no direito de reclamar do destino. Quanto à corja de desonestos que se beneficia das agruras de Cosme, Damião e de outros milhões de injustiçados, um dia isso vai mudar, de um jeito ou de outro. A desigualdade social sempre foi gêmea da revolta. A história prova isso.

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