sexta-feira, 26 de agosto de 2011

A modernidade da escrita

Enquanto as atribulações me afastavam desse espaço, aproveitei para refletir. Antes nosso desafio era uma folha em branco, hoje é uma tela em branco. No lugar do lápis, da caneta ou da velha Remington, artefato que os mais jovens nem podem imaginar do que se trata, vemos atualmente cada vez menores e melhores equipamentos. Outro dia vi uma caneta inteligente, que após desempenhar sua função comum pode transferir os escritos para o computador. Antigamente, a fuga era quando muito para um ghost writer. O estrangeirismo do termo criou asas, se travestiu de glossário e o que dependia apenas dos neurônios do dublê de autor já se apresenta armazenado em terabytes de memória, em breve superada por um nome ainda mais esquisito. A evolução da tecnologia nos trouxe as teclas, evoluímos na arte de deletar, copiar, recortar e colar. Superadas as barreiras naturais de quem se julga antigo, tudo efetivamente está mais simples, mais prático, mais favorável.
Até a ortografia e a gramática, fantasmas de muita gente boa, agora socorrem seus discípulos qual um Domingos Pascoal Cegalla particular se escondendo numa aba do Windows. Em outras abas provavelmente se esgueiram o Olympio Horta de Araújo, a Marília Barbosa e outros que me desvendaram os mistérios das letras unidas em palavras, frases e parágrafos. Cada clique parece abrir a porta de uma sala onde esses monstros sagrados do idioma pátrio permanecem à disposição para dirimir qualquer dúvida. Formulada a idéia, desenvolvido o tema, nem se exige do escriba um profundo conhecimento da norma culta. Basta um programa que corrija os erros e a tarefa se descomplica.
A prospecção pode utilizar a melhor das plataformas, a mais especial ferramenta de sondagem e perfuração, inutilmente, se não há o que extrair. O alento de quem cria é a certeza de que, em qualquer ambiente, a essência não perderá o lugar para a cibernética. Mudaram os tempos, as formas, os padrões, até mesmo a profusão de informações. As letras viraram caracteres. Entretanto, só a inspiração, esse mero e precioso detalhe, se mantém imprescindível. Seja com os velhos instrumentos básicos, seja com os mais sofisticados tablets ou qualquer outra engenhoca que ainda esteja por vir, os textos precisam de alguém que os produza.
Não há algoritmos ou programas que substituam a colheita dos pensamentos no inconsciente coletivo, a perfeita concatenação das ideias, a escolha precisa de cada palavra, a concepção da oração. Quem os fará, quem os adequará em algo digno de ser lido? Dificilmente ouviremos elogios à fonte escolhida para digitar. Em contrapartida, não raro será admirada a fonte de inspiração, a riqueza da narrativa, a profundidade do alcance, a prevalência do bom gosto. A sede mais incontrolável busca a fonte para se saciar de saber. Sorve goles generosos com a sofreguidão dos aprendizes.
Acima das nuvens tecnológicas e dos paraísos dos microchips há uma ativa incubadeira e seu inesgotável manancial de quimeras indomáveis. Suas ninhadas nascem prenhes de lirismo, inoculadas de romantismo puro, contaminando os olhos de quem percorre suas linhas com a avidez dos cúmplices. Está estabelecida a relação consentida, a conspiração do vocabulário, a geração do par binário escritor-leitor. Somos os mesmos, sem noção e por privação de sentidos. Não importa o veículo, pois a reafirmação do desejo está na repetição do prazer. É quando lembramos que à leitura dos papiros bastavam olhos e uma réstia de luminosidade para a plena satisfação. Tomara que jamais nos falte luz ou que a bateria esteja eternamente carregada.

Um comentário:

  1. Oi Alexandre!
    Ontem o filósofo Pierre Levy falou sobre isso: a palavra na cibercultura. Na "digitalização do sentido, do conceito. Segundo ele, em vez de URLs (localizador universal de recursos) como temos hoje, caminhamos para trabalhar numa nova esfera, ou nuvem, ou camada: o USL, o localizador semântico universal. Estaríamos, segundo o estudioso, buscando uma inteligência coletiva reflexiva. Conversa pr'uma mesa de bar porque é filosofia demais para as 8 da manhã!
    Abraaço!

    ResponderExcluir