domingo, 28 de agosto de 2011

A história se repete

“Não há nada nas ruas, parece diferente para mim, as propagandas estão repletas. A parte da esquerda é agora parte da direita, as barbas tornaram-se grandes de repente.”
As palavras ditas fora de contexto ainda assim fazem enorme sentido. Impregnadas de uma atualidade permanente, não me canso de ouvi-las há quarenta anos, quando ecoaram no mundo pela primeira vez. Os currais se abrem e se fecham de acordo com os interesses de quem toca a boiada, os comandantes de nomes mutantes na grafia e de espírito semelhante como a repetição dos dias de quem segue a fila mugindo. Uns mais outros menos vamos cumprindo a nossa missão de perpetuar a espécie, caminhando inexoravelmente para o matadouro. Renovamos recursos e equipamentos, modernizamos processos, descobrimos curas, prolongamos e encurtamos etapas. Pena que para poucos, pois tudo se destina a melhor observar ou integrar a caravana dos privilegiados tuaregues passantes pelo deserto de mudanças sociais.
A queda das bolsas e o desequilíbrio da economia mundial nos abalam. Vemos revoltas em Londres e nos preocupamos com a escassez do emprego numa das capitais mais ricas do mundo. Entretanto, há indigentes em Centro do Guilherme/MA, Jordão/AC, Pauini/AM e Guaribas/PI no outro extremo do Brasil. Mas também os encontramos mais perto, basta que andemos com o carro alguns quilômetros, nem precisa ir muito longe. As imagens do flagelo na África nos chocam tanto que preferimos não vê-las. A realidade dos guetos de Ruanda, Zâmbia, Benin e Etiópia não nos atinge de frente. Embora estejamos ao lado, separados apenas por um oceano, os mares revoltos da indiferença e do conforto nos distanciam muito mais do sofrimento num dito mundo globalizado. Um clique no mouse nos afasta ou nos aproxima da realidade, trata-se de mera opção.
Estou a duas semanas de tatuar em torno de 28 milhões de batidas nesse coração guerreiro. Elas foram mais aceleradas quando meus olhos testemunharam cenas de grande emoção, tocantes pela amargura da injustiça ou pela expectativa de mudanças profundas na realidade cruel que ainda vemos por esse mundo insensível. As gerações se sucedem e o quadro hediondo se mantém intocável na galeria das eras. As teias da inoperância e da imobilidade, retiradas de quando em vez pelo incômodo criado, são tecidas pelas aranhas de todos os tempos, com as fibras resistentes da estagnação.
Segundo Lavoisier, na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. Na vida não é bem assim. Na prática dos costumes quase nada se transforma. A humanidade que sobrevive aos solavancos das intempéries sociais se prostitui a cada segundo, negociando com a consciência as decisões mais difíceis de tomar. É um triste reconhecimento, refrescado a cada esmola que nos rejubila nos momentos de solidariedade dos sinais de trânsito. O gesto que nos redime é o que nos anestesia. Aplaca o desejo de nos sentirmos úteis e partícipes de algo muito maior do que um átimo de segundo numa parada do trânsito caótico, intervalo resumido de nossas vidas. Nosso carma permanece, a despeito da nobreza da intenção de atender à solicitação, empresariada ou não por alguém a poucos metros da cena.
Os versos de Pete Townshend são eternos, nada mudará a consistência e a acidez verdadeira de sua reflexão. Quem quiser resgatá-los na memória, mesmo naquele hermético e dissimulado compartimento das constatações agrilhoadas, poderá revê-los no link http://www.youtube.com/watch?v=Rp6-wG5LLqE Nele relembramos a capa do antológico álbum “Who’s Next”, de agosto de 1971. Quarenta anos antes deles, no frescor de seus tenros dezoito anos, Jorge Amado escreveu “País do Carnaval” em 1931, obra de contundente crítica ao status quo. Esse e outros livros dele foram queimados em praça pública por ordem do Estado Novo em 1937. Victor Hugo publicou “Os miseráveis” em 1862 e por aí vai. Interpretamos um moto contínuo, um ir e vir de sentimentos. Somos ondas de humanismo. O tsunami está por vir. Se somos semelhantes, parafraseando o título e a capa do disco, quem será o próximo?

2 comentários:

  1. Muita verdade em poucas linhas. Mesmo pra quem nao conheceu o grupo, parece familiar. Show de bola.

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  2. The Who: atemporal e universal. Nós, sim, devemos tirar nossos chapéus e nos curvarmos diante de palavras tão afiadas e cortantes.

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