Resistimos aos melhores momentos
e sobrevivemos aos piores, na verdade as fotos da vida representam registros
isolados. Se gravada em película a felicidade seria um filme. Numa ferrovia
seria todo o percurso, ao invés das estações de lembranças alegres ou não. O
equívoco maior reside em buscar algo indeterminado, abstrato, atemporal. Um
estado de espírito não se mede por eventos nem se avalia por cenas isoladas.
Vivemos, mais ou menos longevos, saboreando a sensação permanente de altos e
baixos, às vezes mais altos, outras mais baixos. Nossa existência também se assemelha
a um vinho vintage do ano em que
nascemos, cujo aroma e sabor merecem a observação de cada detalhe, gole a gole.
Ansiosos e inexperientes, de início bebemos o néctar do bem viver com
sofreguidão, supondo tudo acabar com rapidez. Isso volatiliza situações
especiais, tornando-as fugitivas da memória, pulverizando ocasiões preciosas em
meio a tantos lugares-comuns. A experiência nos harmoniza, nos equilibra, trazendo
uma temperança carregada de sabedoria. Nesse estágio passamos a sorver cada
instante com parcimônia, prolongando o prazer cuja repetição não se pode
assegurar. A necessidade, mãe da invenção, nos condiciona ao aprofundamento da
essência guardada nas partículas imperceptíveis do destino. A individualidade
dos seres nos identifica de maneira inconfundível, rótulo peculiar de safras
complexas. À medida que as gotas invadem as papilas gustativas da vivência,
palavras, sons e lembranças se misturam numa combinação difusa e única. Liquefazem
numa cronologia particular o conteúdo de uma ampulheta de Baco, uma enológica
abordagem da linha do tempo. Quando tudo termina e a garrafa esvazia, o bouquet permanece, valorizando a
degustação prolongada e consciente. A singularidade dos grandes vinhos soma inúmeras
qualidades, todas dependentes da moderação e da sensibilidade do consumo. Talvez
assim se explique a tristeza da quebra do vaso que preserva um líquido tão
valioso. A perda de oportunidades tão singelas transfere aos cacos uma condição
sui generis. Embora apenas fragmentos
de embalagem, reúnem as provas materiais do gosto derramado, do odor evaporado.
Farão parte do imaginário, das condicionantes não experimentadas. Talvez por
isso a felicidade não caiba numa taça, mas se saboreie repetidas vezes, da
primeira à última gotícula envasada. O frutado, o tanino, a acidez e outras
alternativas diversificam o mistério a desvendar. E, a propósito, jamais se esqueça de beber em
seguida ao brinde, antes de repousar o copo. Dizem prolongar a felicidade. Saúde!
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